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As pedras no caminho de Peter Gabriel

Um dos artistas mais completos da história, Peter Gabriel nunca cansou de inovar na carreira e ser considerado um homem a frente de seu tempo. Diante disso, não é novidade que parte de seus projetos, musicais ou não, às vezes acabem gerando um estranhamento tão grande que acabe colocando uma pulga atrás da orelha até de seus maiores fãs, como no caso do projeto que envolveu o lançamento de dois álbuns, Scratch my back e And I’ll scratch yours, esse último em 2013.

Para que se possa entender a profundidade de ambos os lançamentos, é preciso compreender logo de cara que ao longo de sua execução as coisas não caminharam como deveriam e um hiato de quatro anos separou um projeto que deveria ter sido lançado de forma simultânea, ainda em 2010.

Se em sua essência o dito popular afirma que You scratch my back and I’ll scratch yours é algo parecido com “coce as minhas costas que eu coço as suas” ou “uma mão lava a outra”, muitos artistas acabaram não querendo coçar as costas de Peter Gabriel, fazendo com que o projeto fosse praticamente abandonado e retomado quase quatro anos depois do primeiro lançamento.

Idealizado para que Peter realizasse algumas versões de outros artistas e vice-versa, a roupagem erudita-moderna do ex-vocalista do Genesis não agradou alguns dos homenageados a ponto de fazer com que And I’ll scratch yours fosse engavetado graças ao abandono de alguns dos nomes que fariam parte de seu cast, caso de David Bowie e do Radiohead, que chegou a afirmar publicamente não ter gostado do trabalho de Peter em Street Spirit (Fade Out).

Ao desconstruir a obra de artistas de grande popularidade na música contemporânea, Peter Gabriel despiu a música e a vestiu como bem entendeu, justamente esperando que nomes como Paul Simon e Lou Reed acabassem levando seu universo musical para dentro do deles posteriormente, uma tônica que fica nítida nas versões irreconhecíveis aos fãs de Peter das faixas Biko e Soulsbury Hill, um mérito que não é preservado em boa parte do disco.

And I’ll scratch yours não é um tributo e isso é algo que precisa ficar claro muito antes de se pensar no saldo final do projeto. Se sua primeira parte, lançada em 2010, acabou inspirando um álbum de estúdio e outro ao vivo no ano seguinte, os ótimos New Blood e Live Blood, lançados respectivamente em 2011 e 2012, a “coçada de costas” levada por Peter Gabriel pouco agregará à carreira dos nomes envolvidos, restando apenas um álbum curioso, denso e desafiador, comprometido justamente pela falta de timing com que foi concretizado.

Ainda assim, And I’ll scratch yours traz bons momentos e surpresas que talvez nem mesmo Peter Gabriel poderia esperar, como na incrível versão de Come Talk to Me, de Bon Iver, e até mesmo Games without Frontiers pelos canadenses do Arcade Fire, que parecem ter incorporado o espírito do projeto com maior naturalidade.

Desafiadoras, as versões de Lou Reed, em Soulsbury Hill, David Byrne, com I Don’t Remember, e do substituto de David Bowie, Brian Eno, com Mother of Violence, parecem ser a nata de um disco que acaba caindo no comum com o ar de tributo prestado por nomes como Regina Spektor, em Blood of Eden, Joseph Arthur, em Shock the Monkey, e dos ingleses do Elbow, em Mercy Street. Não se tratam de versões ruins, mas que praticamente imitam Peter Gabriel e destoam do propósito inicial do projeto, fazendo com que algo grandioso se transforme em uma verdadeira colcha de retalhos, um elemento que chegou a irritar o vocalista em dado momento do projeto.

Se por um lado a ideia original fosse colocar Scratch my back e And I’ll scratch yours lado a lado, hoje chega a ser impossível imaginar que ambos figurem na discografia de um artista que logo no primeiro momento do projeto se mostrou disposto a extrair de cada artista somente a sua composição, criando uma música particular e esperando o mesmo em seguida.

Fica difícil imaginar que Peter Gabriel dedique seu tempo a algo que envolva tantos nomes como foi necessário em And I’ll scratch yours. Não só nisso, mas fica difícil até saber se haveria dedicação em esperar um tributo, na essência da palavra, para seu trabalho. Sempre pensando no futuro e muito mais a frente que 99% dos artistas que preenchem o chamado universo pop, o vocalista se mostrou há tempos um artista que desbravava o futuro e se atentava ao presente, um fator que provavelmente pouco vai lhe interessar depois de um projeto tão tumultuado como esse.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.