Sala Especial

Eliane Elias e o Brasil que não reconhece seu jazz

Premiada pela indústria fonográfica, reconhecida mundialmente e desconhecida em seu próprio país, a pianista, compositora e cantora brasileira Eliane Elias lança Mirror Mirror, um projeto dos sonhos, dividido com dois dos maiores nomes do jazz e que nasce parcialmente em forma de tributo a um de seus maiores ídolos, Chick Corea.

Todos nós temos um sonho. Cobrir um show específico ou festival, dividir um estúdio e, no meu caso, entrevistar um ídolo. Ter por perto alguém que admiramos tanto enquanto executamos nossa função é seguramente o ponto mais alto de um sonho que podemos imaginar. É quando isso acontece de forma eficiente e emocionante, temos a certeza de que estar pronto para aquele momento engrandece ainda mais nossa história. É mais ou menos o que acontece no novo álbum da jazzista brasileira Eliane Elias, com Mirror Mirror, disco onde divide estúdio com dois de seus maiores ídolos, o lendário e saudoso Chick Corea e cubano Chucho Valdés.

Não é a primeira vez que isso acontece com Eliane, mas antes de tudo, quem é essa artista brasileira que o próprio país desconhece? Discípula de Amilton Godoy, pianista do Zimbo Trio, Eliane mudou-se para os Estados Unidos há décadas e lá fez história com o fino do jazz depois de ser destaque na banda de do trompetista Randy Brecker.

Hoje com 61 anos, Eliane Elias tem uma filha, Amanda, que inspirou o título de seu primeiro disco solo e que também tem o jazz correndo nas veias. Conta com um currículo que inclui uma gama surreal de indicações ao Grammy e realizações de sonhos, como o de ter visto nos anos 90 seu dueto com Herbie Hancock ser indicado ao Grammy na categoria de Melhor Solo de Jazz Instrumental.

Dividiu o line up com estrelas do gênero, construiu uma discografia de dezenas de álbuns e sempre levou a musicalidade brasileira aos quatro cantos do mundo, sendo esse o principal trunfo de um trabalho que sempre caminhou pelo jazz evidenciando o samba, a bossa-nova e a história de um país que insiste em ignorar suas conquistas.

Essa versatilidade de Eliane acabou sendo fundamental para a realização de seu último trabalho, Mirror Mirror. Depois de lançamentos que vinham evidenciando especialmente seu poder vocal, a jazzista brasileira esteve diante de dois desafios. Primeiro, sendo uma renomada pianista, Eliane dividiu estúdio com dois de seus ídolos em um disco onde toda a sua capacidade foi posta à prova e só lhe garantiu a ciência de saber que está em pé de igualdade de seus ídolos. Além disso, teve que mostrar que a emoção de ter diante de si duas inspirações em nada comprometeria o andamento exigido em cada peça.

Não é qualquer coisa. Mirror Mirror leva para o estúdio mais do que faixas escolhidas a dedo, além de uma bagagem e amizade de décadas executada em plena sintonia, mas o que faz desse trabalho algo ainda mais especial é a possibilidade de conferir em ação uma das últimas apresentações do lendário Chick Corea, que faleceu em fevereiro de 2021 vítima de um câncer tão raro quanto seu talento. É por isso que nesse álbum, tanto quanto a realização de um sonho, estamos diante de um tributo onde um dos maiores pianistas da história faz o que sempre fez, mergulhar em águas desconhecidas com a mesma facilidade com que respirava.

Chick Corea, que revolucionou o fusion jazz com o Return to Forever e redefiniu a estética com jazz com álbuns que beberam do rock ao flamenco, surge em faixas que evocam rumba (Armando’s Rhumba, do próprio Chick Corea), bossa nova (Blue Bossa, de Nelson Faria) e até uma versão inspirada de Chet Baker, de There Will Never Be Another You. Já Chucho mostra seu tempero latino em uma versão matadora de Corazon Partio, que ganhou fama mundial na voz de Alejandro Sanz, e Esta Tarde Vi Llover, que chegou a ser regravada até por Roberto Carlos. São diversos mundos expressados em pianos sobrepostos, onde cada protagonista encara seu parceiro como um espelho. Daí o título do disco.

Em uma atmosfera de cumplicidade, a técnica fica em segundo plano para um disco que tem ares de celebração e tributo. Não se trata apenas de uma realização de sonho de Eliane Elias e, muito menos, da exaltação da técnica de seus protagonistas. O que está em voga nesse caso é a celebração da música, tão diferente entre cada um, mas única em sua execução. Mirror Mirror é a prova de que o jazz, aquele que desde os anos 30 tanto evoluiu e mudou o rumo do pop americano, hoje está em pé de igualdade nos quatro cantos do planeta.

About the author

Avatar

Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.