Entrevista

Entrevista MIGUEL GALVÃO (PICNIK)

Qual foi a última vez que um evento mudou a sua vida? Não se lembra? Então abra os olhos, existe muita gente disposta a construir uma história fabulosa repleta de música, arte e engajamento social. E se você ainda não conhece, não perca tempo e descubra o PicniK Festival, evento que vai ser realizado em agosto pela quinta vez no Distrito Federal.

Orientado pelo lema “Respirar e transpirar, inspirar e transformar”, o PicniK não é só um festival de música, mas uma experiência que extrapola todos os sentidos. Com uma curadoria minuciosamente realizada, o evento une cultura alternativa e economia criativa em uma experiência mágica e inusitada. Moda, arte e design; tatuagens; exposições; gastronomia; ações ambientais; yoga e meditação; teatro; workshops; feira de vinil; acupuntura, reiki e massoterapia; cinema; área para crianças; curas e atividades culturais indígenas acontecem simultaneamente nos múltiplos espaços do evento. Tudo isso DE GRAÇA.

Repleto de boas histórias, o PicniK se prepara para escrever uma de suas páginas mais bonitas, sendo realizado em 2019 no Memorial dos Povos Indígenas, museu dedicado à cultura indígena brasileira, no DF. Em um momento de transformação social e de urgente valorização da cultura, o evento candango levanta a bandeira da diversidade e se mostra mais do que uma opção, mas um momento necessário no tão turbulento momento em que vive o país. Apontando seus holofotes para artistas candangos, promove um evento amplo e diverso, que busca inspirar pela beleza e harmonia.

O Passagem de Som teve a honra de conversar com Miguel Galvão, curador do PicniK em uma conversa inspiradora e que por si só nos faz refletir sobre nossos valores e objetivos de vida. E antes que você comece a ler essa entrevista, repetimos… quando foi a última vez que um evento mudou a sua vida?

As expectativas com a edição 2019 do PicniK e todo processo de curadoria
Miguel Galvão: As expectativas são altas. Tem 2 anos que estamos negociando de levar uma edição nossa para o Memorial dos Povos Indígenas. Conseguimos pois a nova gestão da Secult está tendo uma maior flexibilidade e dinamismo para poder interagir com o mercado privado, entendendo que podemos agregar com benfeitorias, conteúdo etc. Mas não é nada trivial navegar por essas águas!

A programação teve de ser desenhada em 2 frentes, ambas desembocando de alguma forma no mote de oportunidade do final de semana do nosso evento, que é o dia dos pais.

Primeiro, foi necessário criar elo para justificar a ocupação do espaço que tem por objetivo principal valorizar e promover a cultura indígena. Nesse sentido, vamos promover uma mostra de filmes indígenas, organizamos uma grande vitrine com trabalhos artísticos de mais de 20 etnias, estruturamos uma área de “despressurização” com atendimentos xamânicos e estrear uma parte da exposição Séculos Indígenas, visando promover uma conexão positiva e intensa de nosso público com a nossa ancestralidade.

No outro flanco, o desafio era montar uma programação musical inusitada, sintonizada com o que vem saindo de mais moderno e interessante na cena musical alternativa brasileiro, não deixando de prestigiar nomes históricos (sempre foi um sonho realizar show do Sr Hermeto Pascoal) e de dar oportunidade para bandas locais com trabalhos que apostamos por ser fora da caixa. 

A iniciativa de fazer um festival sustentável e preocupado com questões sociais em 2019
Miguel Galvão: Olha, os últimos 18 meses foram muito difíceis. Além de todo contexto social e político que o país vem vivendo, passamos por alterações importantes em nossa equipe/sociedade e juntamos o fôlego que resta para sobreviver a uma crise econômica que vem sendo devastadora para economia criativa local. Mas (ainda…) estamos vivos e queremos aproveitar da competitividade e sustentabilidade de nosso projeto para compartilhar isso com outros artistas, ideias e/ou iniciativas que porventura estejam precisando de algum abrigo/suporte.

Uma lógica bem amistosa de quilombo mesmo. Não fazemos isso buscando ser mártir ou símbolo (se enxergarem isso na gente, legal!) mas sim com intuito de contribuir com a manutenção de campo fértil em nossa cidade, para que nossa comunidade continue acreditando de que é possível construir uma realidade harmoniosa, criativa e inspiradora sempre!

A curadoria musical
Miguel Galvão: Nessa edição estamos realizando um sonho. Hermeto Pascoal fez parte da construção musical individual de várias gerações: lembro de ir com meus pais a alguns concertos dele quando criança, e isso impactou bastante minha perspectiva criativa e musical. Ele já está com quase 90 anos e sabemos que a tendência é que suas apresentações sejam cada vez mais raras… Unir esse show a uma celebração do dia dos pais, que proponha fugir ao esquema básico presentinho-comercial-shopping-style, criando uma experiência única e marcante em nossa cidade é o tipo de acontecimento que nos motiva a continuar trabalhando para que o PicniK aconteça, mesmo em cenários tão complicados.

Temos de usar bem a luz de nossas estrelas, né? Aproveitamos ela para jogar atenção também para uma série de artistas que respeitamos e que estão buscando desenvolver uma linguagem própria e verdadeira, construindo isso de maneira coerente, de forma que o público se sinta instigado a saborear o evento não apenas para um show em específico. Como somos grande entusiastas do momento musical presente que estamos vivendo, o maior desafio acaba sendo o de ter de escolher entre tantas ótimas opções disponíveis!  

A relação do público com a relação entretenimento x financeiro
Miguel Galvão: Em nossos 7 anos de história, estamos aprendendo a lidar com públicos diferentes em momentos diferentes de vida… Isso é um grande desafio, que aumenta ao nos depararmos com 2 dilemas sistêmicos muito presentes em nossa cultura: o dos Maracanãs e também o de ter de apresentar novidades e/ou surpreender o público sempre. Ambas tendem a se esgotarem uma hora, né? Então como fazer?

Bem, no nosso caso, buscamos nos manter fieis aos nossos princípios e valores, que nos estimularam a fazer esse corre todo lá no início e que também fazem parte de nossas filosofias de vida. Se tivermos muito distantes deles, é sinal de que algo está errado e em breve essa fissura no caso poderá resultar em um buraco fatal. 

Dentro do PicniK buscamos criar uma experiência incrível, que não tenha a grana como filtro, mas sim o conteúdo. E aproveitamos desse tanto de gente juntas, sensibilizadas pela arte, para compartilhar ideias, sabores e cores que acreditamos que podem contribuir com a construção de uma realidade mais positiva e desenvolvida.

Artistas, cachês e a realização
Miguel Galvão: Com certeza podíamos ter tido retornos financeiros muito maiores se tivéssemos optados por não trazer artistas como Mac deMarco, Thee Oh Sees, Yonatan Gat, Holy Wave, dentre outros… Mas se fosse para estar nessa só por grana, era melhor estar investindo nosso tempo e energia fazendo axé music, funk rio e sertanejo.

Com o PicniK nosso intuito, sempre que possível, é criar experiências inesquecíveis e lendárias, que marquem a alma das pessoas e de nossa cidade. Pensar grande dá o mesmo trabalho de pensar pequeno… Com isso em vista, nos sentimos na missão de honrar uma cidade como Brasília, que surgiu de forma épica num acontecimento digno de uma passagem bíblica, continuando inspirando de que é possível ter uma realidade mais ética, equilibrada, bela e divertida. 

Um festival de cunho social em tempos de conservadorismo
Miguel Galvão: Rapaz, nossa estratégia no momento tem sido focar no que esta ao nosso alcance e o que temos em mãos, ou seja, no copo cheio. E nesse sentido somos muito gratos desse copo ainda nos manter motivados para seguir em frente! Momentos de crise como os que estamos vivendo também são muito oportunos criativamente. Espero que nossa sociedade tenha capacidade de manter fértil os campos para essas criações surgirem/se manifestarem.

O legado do PicniK
Miguel Galvão: Medir no sentido Sebrae da vida ainda é difícil. Somos para muitos casos o primeiro contato com a profissionalização e com o mercado privado, numa cidade onde até pouco tempo atrás trabalhar fora da iniciativa pública era um devaneio recriminado pelas famílias. Mas é perceptível como as coisas mudaram: quando eu era criança, a gente sabia que uma família era rica quando essa ostentava quadros em sua parede da sala… Hoje isso é meio que normal, as pessoas até se orgulham de ter o seu cantinho style e original, abastecido por artistas da cidade, e sei que contribuímos com isso.

Para você ter ideia, 2/3 dos empreendedores criativos que participam do evento tem o trabalho que estão apresentando como principal fonte de renda pessoal, sendo que 3/4 residem nas Regiões Administrativas do DF, contando com o que comercializam no Festival para pagar aluguel, escola, comida. E nesse sentido fico orgulho de termos colaborado com desenvolvimento de uma rede que vai muito além do nosso evento: hoje temos uma dezena de lojas colaborativas, um calendário de eventos/feiras regular numeroso e o mais importante, uma cultura crescente de que é legal e importante valorizar o que é produzido na sua cidade.

Tenho orgulho também de termos consolidado um modelo diferente de socialização em grande escala na capital: os abadás foram substituídos por um exército de cangas no chão e pessoas fazendo piqueniques nos privilegiados espaços públicos que temos!

O preconceito com eventos gratuitos no Brasil
Miguel Galvão: Sim, isso existe, com certeza. Em geral o que esta consolidado na cabeça das pessoas é que serão eventos desorganizados, sem serviço algum, com banheiros sujos, inseguros… Pois em geral esse tipo de evento só acontecia com o estado por de trás, né? E sabemos que as coisas feitas pelo governo em geral são largadas mesmo. Então sem sombra de dúvidas, uma das etapas é resgatar o respeito e a confiança do público. Nada melhor que a regularidade e o trabalho sério e comprometido para vencer isso.

Momentos inesquecíveis do festival
Miguel Galvão: Tivemos vários momentos ímpares que nos orgulhamos: gosto de lembrar da 2a edição que fizemos dentro do Jardim Botânico de Brasília e do primeiro Festival que fizemos na Praça dos Cristais SMU, locais intocáveis da capital e que proporcionaram experiências únicas no universo. 

Receber também 30k pessoas no aniversário da cidade, transformando o que poderia ser o caldeirão do capiroto numa grande celebração à Brasília nos enche de orgulho. Tiveram também os shows do Mac deMarco, Gipsydelica, Thee Oh Sees, Guizado, My Magical Glowing Lens, Winter… Amamos tudo isso e poder compartilhar esses artistas que influenciam diretamente nosso estilo de vida e a forma como enxergamos a realidade com nossa cidade é um privilégio imenso. Privilégio ainda maior quando percebemos que todo esse movimento vem refletindo num estilo de vida, cultura e toda uma forma de se socializar dentro da nossa capital, que com certeza, serve de inspiração para tantas outras comunidades país à fora.

PicniK. Daqui para o futuro!
Miguel Galvão: Buscamos nos manter fieis a essa máxima do Rushdie “aos homens todas as terras são permitidas, menos aquelas onde ele já foi feliz um dia”. Esperamos seguir mais alguns anos com essa dificuldade de definir/enquadrar o que fazemos… E enquanto tiver tesão de colocar um bando de gente diferente juntas, nosso circo vai continuar circulando com alegria, compartilhando possibilidades de uma realidade colorida, mágica, criativa, responsável e equilibrada, e que antes de mais nada, você é o senhor do seu destino.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.