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Grace Slick, Matrix e o Coelho Branco

Um dos maiores clássicos da história do rock, White Rabbit, faixa emblemática da carreira do Jefferson Airplane, voltou à cena no trailer de Matrix Ressurrections, mostrando que nem mesmo o tempo pode afastar de certas músicas o seu significado real

Foram dias de total euforia e ansiedade. Assim pode ser definida a última semana na cultura pop, quando o mundo parou para acompanhar o lançamento do primeiro trailer completo de The Matrix Resurrections, a quarta edição da franquia Matrix, uma das mais bem-sucedidas nas últimas décadas. Em meio a efeitos, referências e muita ação, o vídeo se destaca especialmente pela trilha sonora, que acaba dando casando com praticamente toda a temática do filme e servindo de gancho para o que pode ser a derradeira parte da história iniciada em 1999. Mas por que White Rabbit, do Jefferson Airplane, é tão importante nesse processo?

Lançada em 1967, no álbum Surrealistic Pillow, a faixa interpretada por Grace Slick vai muito além do que se ouve. Frequentemente associada de forma simplória a uma intensa viagem de alucinógenos praticada pela vocalista, que naquele momento fazia seu debut na banda, a rasa história acabou deixando de lado um momento importante da sociedade americana, fazendo com que as frases mencionadas na música passassem a esconder um significado muito mais profundo.

No trailer de Matrix Ressurrections, há a referência óbvia entre o despertar do protagonista para o mundo real com a menção do coelho da obra literária Alice no País das Maravilhas. Essa relação também serviu de inspiração para Grace na composição da música, realizada antes mesmo de sua entrada no Jefferson Airplane, quando ainda integrava o Great Society.

Naquele momento, a sociedade americana vivia um processo de ruptura da família tradicional. Até então, mulheres ocupavam um papel de submissão ao homem e sua principal função era cuidar dos afazeres domésticos, uma estrutura transmitida de geração em geração. Basta acompanhar seriados clássicos como Anos Incríveis para compreender a posição de uma família na relação homem e mulher dentro de casa. Por isso, muito além de uma “viagem” de ácido, White Rabbit é um grito de libertação contra a sociedade patriarcal.

Vivendo o auge movimento hippie, que por sua vez pregava essa desconstrução, nada mais essencial que demolir essa estrutura com o uso de substâncias para atingir um nível mais elevado de pensamento. Na letra da música, repleta de referências à obra de Lewis Carroll, Grace Slick enche de significados cada estrofe, culminando com o apoteótico final, em que diz:

“Remember what the dormouse said: “Feed your head. Feed your head”
“Lembre o que o arganaz* disse: “Alimente sua mente, alimente sua mente”

*arganaz é o personagem representado pelo roedor em Alice no País das Maravilhas

Musicalmente, White Rabbit tem pouco mais que 2 minutos e uma letra curta executada em cadência quase marcial. Isso não acontece por acaso. Inspirada pelo Concierto de Aranjuez, obra de Joaquín Rodrigo, essa obra serviu de inspiração durante a Guerra Civil Espanhola nos anos 30 e ganhou uma releitura de Miles Davis em 1960, justamente na virada da década que desconstruiu o jazz, que vivia nos anos 50 o auge de sua popularidade. Foi essa ousadia do trompetista que ajudou Grace a estruturar as estrofes compostas em seu quarto. Há alguns anos algumas matérias chegaram até a mencionar que a faixa do Jefferson Airplane teria um andamento similar ao Bolero de Ravel, mas nada aprofundado.

Voltando para o presente, fica muito mais fácil encontrar no trailer as alusões não só ao conto de Lewis Carroll, mas especialmente à trilha do Jefferson Airplane. Seja na referência do coelho, no uso das pílulas ou a passagem pela porta/realidade sendo conduzido por uma garota, o que se vê na trilha é a descrição perfeita do que nos anos 60 significava a ruptura de toda uma sociedade.

Obviamente não é necessário ter isso em mente para se divertir com Matrix ou com Jefferson Airplane, mas se torna divertido ter a certeza de que aquela voz da vocalista encaixa tão bem no trailer não foi escolhida por acaso. Nos anos 60/70 White Rabbit fez muitas garotas passarem a se manifestar das formas mais diferentes, o que eleva essa pauta para outra esfera. No filme, é a vez de uma delas levar o protagonista do filme a fazer o mesmo.

A história está em cada gesto e cada palavra, diante disso nos resta se divertir e aprender.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.