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IDEOLOGIA: Três décadas da obra-prima de Cazuza

Engajado e dono de um talento fora da realidade, Cazuza lançou seu melhor trabalho às portas da morte, em 1990. Com o álbum Ideologia, lançado dois anos antes, o músico e poeta carioca se estabeleceu como um ícone de sua geração, cravando seu nome na história e estabelecendo um legado que serve de inspiração a todas as gerações, tanto tempo depois.

O ano de 1988 não foi um ano fácil para o povo brasileiro. O país vivia um período turbulento com sua economia fragilizada e a sombra dos fantasmas da ditadura. Em paralelo a isso o fim da censura jogava luz a um povo que clamava por dias melhores, mas ainda parecia tentar resgatar sua identidade. Foi diante desse cenário que Cazuza lançaria seu maior (e último) trabalho de estúdio, Ideologia. Um inventário definitivo diante da doença que o levaria dois anos depois.

Na época Cazuza não andava bem de saúde. Eram constantes internações entre o Rio de Janeiro e Boston à medida em que a doença consumia cada vez mais suas energias. Doses constantes de AZT cobravam seu preço e o músico parecia não ter mais forças. Parecia.

Quando decidiu entrar em estúdio durante os dois primeiros meses de 1988, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, o eterno poeta sabia que não lhe restava muito tempo, por isso cada segundo importava. E sob essa condição nasceu o disco que revolucionou a música brasileira e cravou de vez o nome de Cazuza como um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos.

Despido de qualquer pudor e livre para encarar todos os seus (e nossos) fantasmas, Cazuza encarou de frente tudo o que achou necessário. Sua saúde, os problemas sociais e, principalmente, o amor. Embora pouco fale-se hoje, Ideologia foi idealizado como um disco conceitual, com faixas que giravam em torno de alguém em busca de identidade, frustrado pela sua condição, mas ciente de ter cumprido seu papel.

Boas Novas, faixa que se encaixava sem pausa após a catarse da faixa-título de Ideologia, ironizava sua saúde ao afirmar “eu vi a cara da morte e ela estava viva”. Cazuza sabia da urgência do disco e não hesitou em dizer “Queria um dia no mundo poder te mostrar o meu talento pra loucura”. Era agora!

Composto por 12 faixas, Ideologia teve produção do baixista Nilo Romero e do ator e jornalista Ezequiel Neves, além do próprio Cazuza, que construíram um disco repleto de metáforas (O Assassinato da Flor) e uma raiva poucas vezes vista no artista carioca. Fruto de parcerias de peso com nomes como George Israel (Brasil), Ritchie (Guerra Civil) Frejat (Blues da Piedade) e Gilberto Gil (Um Trem para as Estrelas), o álbum hoje é praticamente a síntese da carreira de Cazuza, tal qual uma coletânea.

Composto em sua totalidade durante o período em que permaneceu internado nos Estados Unidos e no Brasil, Cazuza deu forma a um disco que também mudava sua vida. Era um grito de urgência para todo o povo e para aqueles que, segundo sua definição, eram pobres de espírito. Era também uma serena carta de despedida, como se perceberia tempos depois a partir de composições como Um trem para as Estrelas e Faz Parte do meu Show, que contou com arranjos de bossa-nova, uma de suas grandes paixões.

Lançado um ano após o estrondoso sucesso de Que País é Este?, da Legião Urbana, Ideologia reforçaria o caráter social do rock nacional dos anos 80, especialmente na voz de Renato Russo e do próprio Cazuza.

O sucesso foi instantâneo. Ideologia e Faz Parte do meu Show foram os singles mais executados nas rádios do país, mas praticamente todo o disco se tornou parte do cotidiano de um povo que aprendia novamente o significado da palavra liberdade. Mesmo debilitado, Cazuza embarcaria em uma curta turnê, de onde se originaria outro clássico de sua carreira, o ao vivo O Tempo Não Pára, gravado em outubro do mesmo ano.

Com seu estado de saúde cada vez pior, se tornaria cada vez mais difícil para Cazuza compor e gravar, mas ainda assim Burguesia, um álbum duplo, seria lançado em 1989, se tornando o último registro em vida de Cazuza, que sucumbiria ao vírus da AIDS um ano depois.

Três décadas após seu lançamento, Ideologia soa atual. Com letras que seguem mais urgentes do que nunca, evidencia que uma sociedade que se perde entre tantas ideologias se mostra carente de amor, elemento principal de seu terceiro – e definitivo – trabalho de estúdio.

Com uma capa idealizada por Luiz Zerbini, que trazia desde estrelas de Davi até suásticas nazistas, além da foice e martelo da bandeira da extinta União Soviética, só mostra o que sabemos hoje. Sem informação e amor nada é possível.

Cazuza sabia disso há trinta anos e, aparentemente, falta muito para entendermos isso também…

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.