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Marcelo D2 | Na linha de frente da resistência cultural

Em turnê de divulgação do excelente “Amar é para os fortes”, Marcelo D2 leva para os palcos e para a vida de seu público que, em tempos sombrios, é possível vencer a guerra sem agir ou assumir para si todos os defeitos do inimigo.

Já não é de hoje que Marcelo D2 refaz ao vivo uma parte de um dos trechos mais emblemáticos de “Mantenha o Respeito”, clássico do Planet Hemp, quando substitui o verso “a minha segurança eu faço na cintura” por “a minha segurança eu FAZIA na cintura”.

Mesmo para quem não percebeu isso nas tantas apresentações do rapper ao longo dos anos, fica claro que o discurso de D2 é muito mais profundo que a agressão recíproca tão insinuante nos tempos atuais. E o resultado disso pode ser conferido em cada faixa de seu novo álbum, Amar é para os fortes, um exercício de reflexão em tempos onde o ódio emana por todos os lados.

Desde que o álbum Usuário chegou ao público, ainda nos anos 90, pouca coisa mudou. Se naquela época faixas como “Porcos Fardados” davam o tom da crítica, hoje é perceptível uma mudança de direção do discurso de D2, mas se engana quem pensa que o mesmo segue mais simplista ou leve. Muito pelo contrário, quase três décadas depois, o artista carioca segue com foco muito bem definido, mas seus versos surgem com maior serenidade. Não a toa, seus shows têm se transformado em uma verdadeira experiência de imersão por ideias e valores que são exaltados a todo instante.

“O tempo ‘tá fechando, então toca a sirene / Não mandaram educação, só mandaram a PM / Se continuar assim, amigo, a gente vai pra cima / Fecha a porta, acende a vela lá no alto da colina” – Alto da Colina

Em um momento onde vertentes do rock parecem pender para um lado conservador e que vai de encontro com seus ideais, D2 vai pelo lado oposto e se posiciona como um nome de linha de frente ao lado de artistas como Criolo, Emicida, Djonga, BK e uma legião de rappers e artistas da nova MPB que captaram na sensibilidade de suas letras o caminho certo para a música como agente transformador.

“Roubaram meu sonho, acabou / Se eu fui livre, hoje, eu não sou / Se eles querem guerra, eu não / Mas é na febre do rato que eu ‘tô” – Febre do Rato

E são vários fatores dão vida e amplificam a música de D2. Cortes na educação, repressão policial cada vez mais absurda, racismo vigente em todas classes e o surgimento de um abismo social, tudo se amplifica de tal forma que justifica o termo “resistência cultural” tão exaltado em seu show. No palco, mais do que entretenimento, o que está em jogo é a própria liberdade de se indignar com uma situação visível a todos os olhos.

A sensibilidade e o discurso que vem adotando Marcelo D2 (e tantos rappers que vem ocupando espaços públicos com uma força cada vez maior), seja nas redes sociais ou no palco, se faz necessária justamente em um momento onde a agressão parece cada vez mais óbvia. Em outras palavras, tudo isso não soa como Chico Buarque cantando “Apesar de você, amanhã há de ser um novo dia”, mas também não foge do fato de que todos juntos podem mudar a situação atual.

A partir de então a música funciona como um mantra. E é nesse papel, como uma espécie de “mantra popular”, que a mensagem ganha força no discurso de quem ocupa as ruas e une o povo contra as injustiças. “Existe Amor em SP”, de Criolo, é muito mais que um verso solto. É algo que pode alimentar, mesmo que superficialmente, a cultura de uma cidade. E vai além do próprio rap, claro.

Com a facilidade de dialogar com outros estilos, sejam ícones do passado e do presente, o vocalista do Planet Hemp surge como um representante forte nesse processo, que abrange aí tantos bons artistas quanto ele próprio. Sempre pronto para fazer uso de sua influência, Marcelo D2 faz de sua popularidade um canal aberto para a mudança, mostrando que o título do seu disco não é a toa. Amar É sim para os fortes!

Alçado a um dos principais nomes da música nacional já há bom tempo, o autor de “Amar é para os fortes” conseguiu unir extremos que vão de Sabotage a Zeca Pagodinho, da saudosa Beth Carvalho a Chico Science e Karol Conka. Tudo lado a lado.

Talvez seja pretensão demais acreditar que a música possa mudar um país como o Brasil, mas é inegável que ela sempre se fez presente em períodos mais conturbados na frágil democracia. Seja como uma adolescente rebelde na Tropicália ou na atuante MPB, o que une hoje a música feita no país é justamente a facilidade de dialogar com os mais diversos nichos, a ponto de conseguir transformar tudo em um único público.

Dono de canais que unem milhões de pessoas, Marcelo D2 ocupa a linha de frente em um momento que poderia ter tido como protagonistas nomes que parecem ter ficado no passado, como O Rappa, por exemplo. O que é uma pena.

Tudo isso, óbvio, vai além do que se vê e ouve. Dono de um selo-gravadora, a Pupila Dilatada, há por trás de “Amar é para os fortes” uma autonomia que destoa da indústria fonográfica; e em tempos onde se posicionar se faz mais do que necessário, não se posicionar sempre significou estar do lado opressor. É quando juntamos as peças de um quebra-cabeça de mais de duas décadas e vemos o quão corajoso foi se posicionar no passado, tão dependente das grandes indústrias.

Em um momento onde a arte se faz necessária, a música brasileira se mostra pronta e com suas lacunas preenchidas por vários protagonistas, todos lado a lado. E ter ao seu lado alguém onde a voz reverbera ainda mais longe é ainda melhor.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.