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Sapopemba, Kiko Dinucci e a importância do Brasil laico

Lançados praticamente ao mesmo tempo, os belíssimos lançamentos de duas diferentes gerações da música brasileira realçam a importância de respeito pela cultura e a fé que pavimentaram a história do país, que vive sua maior onda de intolerância.

Rastilho e Gb??, respectivamente novos álbuns de Kiko Dinnuci e do alagoano Sapopemba, chegam nesse início de 2020 com potencial para figurar entre os grandes lançamentos do ano, mas mais do que duas verdadeiras obras de arte, ambos os álbuns também surgem como um verdadeiro pedido de socorro.

Notavelmente influenciada pela música africana, em especial a percussão, a música brasileira tem em suas raízes elementos que bebem diretamente da cultura Yorubá, um idioma da família linguística nígero-congolesa que no século XX ajudou a dar forma àquilo que o mundo passou a conhecer como afrobeat através do talento de Fela Kuti.

Falando de uma forma mais simplista e direta, mais do que identidade de um povo, o yorubá se manifesta diretamente nas religiões em vários pontos do planeta. No Brasil isso pode ser visto com mais clareza no Candomblé, religião que ganhou notoriedade em especial dentro da MPB já nos anos 60 através de grupos como Os Tincoãs e tantos outros ícones como Clara Nunes, Pixinguinha, Dorival Caymmi e Maria Bethânia.

De forma explícita – ou não – o Yorubá sempre esteve presente na música brasileira e basta uma rasa pesquisa para concluir isso. Some a tudo o que foi dito a capacidade de se reinventar da música brasileira ao longo de décadas e, como o próprio Sapopemba afirmou em entrevista so site do SESC nesse janeiro/2020, a MPB “jamais poderia ser compreendida sem se passar pelo terreiro”, que é local onde se realizam as festas no Candomblé.

Tudo isso que foi dito deveria ser óbvio e normal dentro de um país definido laico como o Brasil. Afinal, o respeito por todas manifestações religiosas deveria ser algo natural, mas não é o que acontece nos últimos anos.

Em tempos onde a intolerância com as religiões africanas atravessa uma fase cada vez mais assustadora, o lançamento de dois álbuns dotados de rara beleza soam como um grito de socorro por respeito às manifestações artísticas e religiosas que pavimentaram a história do país.

Rastilho, lançado por Kiko Dinucci, é o primeiro da carreira do cantor a ter como fio condutor apenas o violão. Compositor, instrumentista, artista plástico e diretor de cinema, Kiko faz de seu novo projeto um disco urgente, que respeita o seu título, uma espécie de pavio, aquele que leva para a explosão de algo.

Abusando do caráter percursivo do violão, Kiko explora ao longo de onze faixas a riqueza de um instrumento que vai muito além do que se vê. Ecoa Baden Powell nesse processo, outro artista ligado ao candomblé, mas que, convertido, hoje renega parte de sua obra. Já Kiko proporciona um ode ao Candomblé através de faixas como Olodé, que é Oxossi no Candomblé. E esse é só o primeiro capítulo de um disco que mergulha de cabeça pela cultura brasileira, naturalmente pela religião de raiz africana.

Com participações que vão do rapper Rodrigo Ogi, em Veneno, Ava Rocha, em Dadá, e a parceira de longa data, Juçara Marçal, Rastilho impressiona pela urgência. Por trás do deleite de faixas executadas com tamanha mestria, há ali um grito por respeito pela manifestação artística e religiosa que tanto encantaram ao longo da história.

Já em Gb??, disco de Sapopemba, o percussionista alagoano de 72 anos canta a história de quem viu e viveu tudo o que a vida pode proporcionar. É o significado Yourubá de seu disco, que tem como tradução algo como “mostrar”.

Com faixas como Exu, Ogun, Tatará, Oyá e Bessem, exalta seu mergulho pelo Candomblé e pela religiosidade através de uma sinceridade que não é ensinada em nenhum livro especializado sobre música. Sem nenhum estudo formal de música, Sapopemba deu forma à sua carreira através de sua vivência no mundo da música. Mais do que um disco, Gb?? é um trabalho feito para quem está disposto a abrir a cabeça e entender o poder da voz e da percussão na música brasileira. Não é só religião, é música no sentido mais puro da palavra.

Discos lançados praticamente ao mesmo tempo, Rastilho e Gbó são fruto do talento de dois artistas respeitados internacionalmente e que correm o risco de ser marginalizados em tempos de intolerância. Distantes do glamour e das cifras movimentadas pelo universo da música gospel/cristã, isso pouco importa para Kiko e Sapopemba. O que está em jogo vai muito além do que se ouve.

E aquilo que se ouve em ambos os álbuns, passíveis de uma experiência imersiva capaz de mudar vidas, é exatamente aquilo que ajudou a dar forma à cultura de um povo. Seja no samba ou na mais refinada nata da MPB, o que é exaltado em Gbó e Rastilho é a busca por respeito, mais do que qualquer coisa.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.