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A música vai nos separar

O ano é 2017 e praticamente todos os grandes nomes da música mundial, além de festivais como Lollapalooza e Tomorrowland, passam – ou passaram – pelo Brasil. Com a proposta de levar seu público a um êxtase cada vez mais imediato para suprimir as mazelas de um mundo cada vez mais complexo, a música parece ter abandonado de vez sua função social e se tornado mero entretenimento. Mas seria a música algo diferente disso?

Às vésperas de encararmos 2017 como passado, nos perdemos noite adentro em lembranças de um ano realmente intenso musicalmente. Rota de algumas das maiores turnês da história, o Brasil viu o The Who tocar no país pela primeira vez em mais de meio século, assim como Axl Rose realizar apresentações de quase quatro horas em um Rock in Rio onde a música quase não importava. Ícones do pop como Bruno Mars e Ed Sheeran fincaram sua bandeira nas grandes capitais e bandas até então impensáveis, como Magma, Acid Mothers Temple e Neurosis, iniciaram sua trajetória por aqui.

Vimos ídolos partirem, caso de Tom Petty, Fats Domino e Chuck Berry, assim como muitos outros novos encabeçarem listas em charts mundo afora. E pensando nisso fica a pergunta: quando, em 2017, a música teve a capacidade de mudar a sua vida?

A ideia desse texto não é questionar a índole ou comportamento de quem frequenta o mercado de entretenimento nos últimos anos. Não vivemos mais em uma geração onde o ponto de partida para a mudança foi Jimi Hendrix entoar o hino americano ou John Lennon pedir paz no dia de Natal. O mundo está muito mais complicado que isso e por esse motivo a música se faz ainda mais necessária, especialmente para nos resgatar dessa realidade por duas, três ou dez horas, tanto faz.

O grande problema reside justamente na ideia de que cada vez mais o entretenimento se posiciona como uma pílula capaz de separar as pessoas. Seja a pista VIP da arquibancada ou então o show privado na emissora de TV do fã que por anos comprou o CD de sua banda favorita. Tudo isso frente a uma produção cada vez maior, tão impactante que o instrumento principal, a música, se torna símbolo de uma geração que joga no ralo praticamente tudo o que foi conquistado ao longo do século passado.

Um dos casos mais emblemáticos certamente é o da música eletrônica. Depois de emergir do underground no fim da década de 90, atingir seu ápice e se renovar no novo século, o que antes acontecia como um canal à margem do mercado de entretenimento hoje é símbolo de ostentação, especialmente pela megalomania proporcionada por franquias como Tomorrowland, EDC, Ultra Music Festival e tantos outros.

Grandes clubs suprimem o espaço de festas menores como um gigante insaciável por status, fruto de um mercado que, mais do que primar pelo bom gosto, prima pela experiência. E ela precisa ser perfeita noite após noite. Da cena Techno de Detroit com nomes como Jeff Mills e Underground Resistance, quando jovens se reuniam para trocar mensagens de movimentos contra o racismo a intolerância, pouco sobrou. Alguns desses nomes seguem na ativa, muitas vezes se apresentando em eventos onde o custo ultrapassa o salario mínimo brasileiro.

Porém a grande mudança certamente foi no mundo do rock. Entre retornos e turnês de despedida, parte delas certamente reunidas na edição megalomaníaca do SP Trip – o Brasil teve a chance de ver alguns dos nomes mais influentes da história se tornarem reféns da tecnologia, o que pode muito bem ser refletido no contexto em que grupos como U2 e Coldplay se encontram.

Donos de apresentações catárticas ao longo de suas histórias, ambos viveram no Brasil situações díspares. Enquanto o U2, de raízes punks da década de 80 e discurso afiado, encarou o questionamento por trazer ao país sua turnê mais restrita no setlist e simplória visualmente, o Coldplay conquistou o país com cores, hits e uma vibração que condiz com a necessidade de um público imediatista. Foi a vitória do novo rock.

Isso não quer dizer que Coldplay e U2 sejam rivais, muito menos melhores ou piores um que o outro, mas fica nítido que a música hoje pede uma relação muito mais sinestésica do que auditiva. Não há mais tempo para se concentrar no que é executado. E isso fica nítido na relação de faixas do politizado The Joshua Tree em relação aos hits de Viva la Vida or Death and All His Friends.

Em um mundo cada vez mais globalizado, onde o Ocidente se prepara dia após dia para a invasão definitiva da cena de KPop e JPop, proporcionar uma catarse tão rápida já não é mais possível somente através da música, é preciso algo mais. Um cenário, uma dança. Bexigas e cores. É preciso fazer dançar.

A cultura do “imperdível” também se tornou fundamental para a música moderna. Do show que o público se sente afortunado o suficiente para registrar no Stories do Instagram vídeos de som estourado em borrões de luz. Aquele que seus amigos precisam saber que você conseguiu e que se divertiu de forma tão única que ninguém mais poderá alcançar naquela turnê. Tudo isso é uma engrenagem que não falha. E se não falha não tem porque ser modificada a curto prazo.

O ano de 2017 exauriu a fórmula da catarse momentânea, aquela que parece separar as pessoas que viveram momentos “únicos” de quem não teve a condição, o que na maioria das vezes é visto com bons olhos por parte do público. E em uma indústria pop que se reinventa diariamente, a única injustiça segue sendo a ideia de que as pessoas não se preparam para viver momentos únicos, afinal, quanto vale o show? Qual o último disco que mudou sua vida? Qual artista te instigou a fazer algo? Parafraseando o clássico do Barão Vermelho (além da coluna “Pense ou Dance” do grande amigo Fernando, do site Floga-se, um bastião do bom conteúdo na internet), vivemos um mundo onde Pensar e Dançar não podem mais viver tão próximos um do outro.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.