Artigo

A São Paulo não é mais minha, não é mais sua. É de quem pagar.

Vivendo um clima de pós-pandemia com a retomada de eventos, a maior capital do país se remodela para finalmente ocupar os espaços públicos como o Anhangabaú ou o Ibirapuera, mas ao invés de agregar, mostra que o futuro do entretenimento será cada vez mais para poucos.

Definitivamente não era o tipo de texto que gostaria de escrever sobre o assunto. Afinal, foram dois anos sem eventos oficiais, com centenas de shows adiados, eventos de grande porte cancelados de forma definitiva e artistas infectados. Um pesadelo que parecia não ter fim, mas que, com o avanço da vacinação, novamente passou a nos dar a possibilidade de enxergarmos a linha do horizonte de um mundo normal, agenda cheia e entretenimento para as grandes multidões, mas talvez nem tanto assim.

Nos últimos dias, com a realização dos shows do Skank – adiados desde o pré-pandemia – no Espaço das Américas, agora com 100% da capacidade e com a possibilidade de transitar em espaços abertos sem máscara, o passado finalmente se encontrou com o presente e abriu caminho para o futuro. Temos inúmeros shows sendo confirmados, mas em meio à crise, obviamente a questão dos preços de ingressos pode influenciar nesse ímpeto. De qualquer forma, esse texto não é sobre isso, o buraco é muito mais embaixo.

Há anos fala-se sobre a ocupação de espaços públicos para a realização de eventos. O centro da cidade, em especial, é a cereja do bolo de um processo iniciado no passado, muito lá atrás. Palco de grandes eventos, em especial a Virada Cultural, o Anhangabaú foi 100% reformado em um processo extenso e questionável, não só no design, mas sobre a sua utilidade.

Atualmente pronto para receber eventos de magnitude digna do tamanho da capital que o abriga, o espaço que parecia para todos se desenha como espaço privado, pronto para abrigar eventos para públicos reduzidos e preços astronômicos.

Aconteceu, o Centro de São Paulo está sendo ocupado, mas não dá forma como deveria. E se nada for feito agora, para cada Virada Cultural aguardada anualmente, teremos dezenas de eventos pagos selecionados, tirando o espaço de onde as pessoas poderiam circular quando bem entendessem. É simbólico demais que o primeiro evento de ocupação do reformado Anhangabaú tenha o custo de quase R$ 300, dividindo os valores entre masculino e feminino. Ele aconteceu na última sexta, 18 de março, e todos que transitasses no fim de tarde pelo imponente centro perceberiam uma área com isolamento feito por um aparato de segurança imenso, aguardando o público da Savannah, festa que tem como destaque o DJ sul-africano Black Coffee.

Para os próximos dias, outro evento também chama a atenção, trata-se da Festa Castro, um projeto conceitualmente incrível, já que é inspirado no sub-bairro dentro do Eureka Valley, em São Francisco, o The Castro. Um evento que levanta as bandeiras LGBTQIA+ e que contará com a espetacular Glória Groove em seu line up, além do mega hype Vintage Culture, maior DJ brasileiro em atividade.  Seria a ocasião perfeita para levar ao Centro da cidade um público que vem enfrentando nos últimos anos um avanço significativo nos crimes de ódio, como o caso ocorrido na última semana, praticamente a 200, 300m do palco onde vai rolar o festival.

Com ingresso a partir de R$ 130, o Castro Festival trará ao Anhangabaú 8 DJ’s e 10 drag queens que irão se apresentar em 2 palcos durante o evento. Um evento gigante, mas que, assim como a Savanah, terá um público disposto a pagar por ele e que, assim, ganhará condições de avançar às grades que dividem o centro de São Paulo.

Provavelmente pouca gente está sabendo de ambos os eventos. Graças ao recurso impecável de big data das redes sociais, é fácil demais atingir um público específico, por isso, não é surpresa ver ambos lotados em sua realização.

Outro espaço que vem ganhando destaque é o Parque do Ibirapuera. Não seu anexo, o ginásio ou o estádio Ícaro de Castro, que já recebeu os Stones nos anos 90. Estamos falando do parque em si. É nele que vai acontecer o Turá Festival, um evento fantástico na parte estética, com grandes nomes da música brasileira no gramado do Auditório do Parque do Ibirapuera, onde normalmente ocorrem eventos gratuitos.

Vale ressaltar que essa não é a primeira vez que ocorrem eventos pagos no Ibirapuera, bom que se saiba disso. O Tim Festival 2008 já havia levado Kanye West, MGMT e The National, entre outros, para tendas especiais do festival, mas que eram utilizadas após o fechamento do parque.

Com a retomada de eventos, há um choque natural da correção de valores, afinal, são dois anos sem nada. No caso do Turá, os ingressos transitam entre R$ 192 (a meia para um dia de evento) até R$ 840, a inteira do passaporte. Independente dos valores citados, proibitivos para uma grande maioria da população, o que está em questão é: o que faremos com quem vai conseguir circular pelo parque durante os dias de festival, já que a área será isolada para o evento?

Seja como alerta, “pegação de pé” ou simplesmente informação, estamos diante de um processo cada vez mais evidente onde o espaço público servirá para plataforma de eventos inesquecíveis, que poderiam ser para toda a população, mas nesses casos apenas para quem pode pagar. E se naquele dia ou noite em que você planejou uma volta no parque ou pelo centro da cidade, mas se viu diante de tapumes e seguranças, é porque isso já começou a impactar sua realidade. Aos poucos, a São Paulo de todos se transforma na cidade de quem pode pagar pelo que ela pode oferecer em seus espaços públicos.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.