Sala Especial

Airto Moreira, Flora Purim e as paisagens musicais para a eternidade

Com shows realizados em São Paulo, Airto Moreira e Flora Purim escreveram em seu país de origem algumas de suas últimas páginas na carreira, deixando um legado tão gigante que sua aposentadoria nos encherá de orgulho daqui para todo o sempre.

Quando se despediu do público pela última vez, na noite do último domingo de janeiro, Flora Purim brincou ao dizer “Obrigado por tudo. Até uma próxima vez, em uma outra encarnação, em um outro lugar”.

Embora o sorriso estampasse seu rosto, de alguma forma aquilo foi um choque. Era o segundo dos dois shows que a dupla realizava no SESC Belenzinho dentro de sua turnê de despedida, encerrando aqui uma história de muito mais de meio século dedicado à música e que encontrou no exterior um respaldo merecido e que até hoje o público brasileiro não consegue proporcionar aos seus principais nomes.

Hoje respectivamente com 80 e 79 anos, Airto Moreira e Flora Purim podem ser considerados o elo mais profundo entre o auge do jazz americano e nossa contemporaneidade. Estiveram ao lado de grandes nomes e construíram uma carreira de sucesso que se cruzou com alguns dos maiores patrimônios do jazz mundial.

Para se ter uma dimensão disso, o percussionista fez parte da banda de Miles Davis, Gato Barbieri, Stanley Clarke e Cannonball Adderley. Já Flora colecionou parcerias que vão de George Duke e Dizzy Gillespie a Carlos Santana e o Rhythm Devils, projeto de Mickey Hart e Bill Kreutzmann, do Grateful Dead. Casados, também construíram uma sólida discografia solo e foram peça fundamental na história do genial Chick Corea, com quem gravaram no auge do seminal Return to Forever.

Com dois discos que remodelaram a estética do jazz, Chick Corea preencheu as bases definitivas do fusion jazz com o álbum de estreia do grupo e sua sequência, Light as a Feather, respectivamente de 1972 e 1973. Essa fase de tansformação na estética do jazz havia se iniciado três anos antes, em 1969, com o lançamento de In a Silent Way, de Miles Davis.

Diferente de participações em grandes álbuns, a dupla brasileira sempre ocupou um protagonismo importante na história d jazz. O talento de Airto e Flora Purim conseguiu ao longo de décadas proporcionar uma magia tão eficiente quanto a sinergia entre um arco e uma flecha ao ser disparada. Por décadas, Flora sempre teve como background de seu trabalho a capacidade do marido transpor sua voz para uma nova atmosfera, a natureza.

Airto Moreira, assim como gênios do calibre de Naná Vasconcellos, Djalma Corrêa ou Paulinho da Costa foi um dos primeiros nomes brasileiros a se projetar no exterior, especialmente após o furacão da bossa-nova nos anos 60, muito mais pautada pelos instrumentos de cordas. Sua capacidade em extrair dos mais diversos instrumentos a ambientação perfeita para o jazz cantado pela esposa, sempre resultou numa experiência sinestésica. Nem mesmo o implacável poder do tempo sobre a força física, percebido na última apresentação da dupla no Brasil, foi capaz de afetar sua genialidade.

Flora Purim, assim como Airto Moreira, não vão se distanciar da música por completo com a despedida dos palcos. Com um novo álbum pela frente, Flora não esconde a empolgação com o lançamento e certamente nos fará dar ênfase nesse projeto por aqui, mas não teremos mais a chance de conferir ao vivo essa magia que o casal nos proporcionou tantas vezes.

Ver o adeus da dupla que foi pilar do trabalho de tantos artistas reverenciados aos quatro cantos do mundo nos faz forçar a buscar explicação sobre o motivo do Brasil não fazer o mesmo. Sempre em seu país de origem, Flora e Airto não criaram só música, mas paisagens. E essas o tempo não vai ter a mínima chance de apagar.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.