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Anitta e o silêncio do pop

Alçada a um patamar onde poucas artistas na história do país conseguiram chegar, a cantora pop Anitta derrapa feio ao se isentar sobre o turbulento momento social que a cerca e reacende a questão sobre o papel do pop em tempos atuais.

Há alguns meses, nesse mesmo site, falamos sobre como Anitta e Pabblo Vittar se tornaram fundamentais na indústria do pop (nacional e internacional). Batemos firme na ideia de que as críticas contra a jovem cantora carioca tinham um cunho social muito além de suas músicas, o que acabava resultando em uma perseguição quase irracional, reflexo da intolerância e da onda conservadora dos tempos atuais.

Hoje Anitta volta a ser pauta no Passagem de Som, dessa vez para colocar em xeque o verdadeiro papel dos ídolos da música pop da atualidade. Tudo é só música? Onde começa e onde termina a influência de um artista? E indo um pouco mais além, qual a hora certa de abrir a boca ou se isentar de vez?

Antes de traçar qualquer paralelo vamos pensar na grande Rainha do Pop, certamente uma das maiores artistas da história, a até hoje inigualável Madonna. Claro, eram outros tempos, mas se torna impossível mensurar a quebra de padrões proporcionados por uma artista que levou questões como aborto, drogas e sexualidade à salas de jantar mundo afora. Por outro lado, como se deu a relação de Madonna com seu público ao longo dessas últimas décadas?

Rainha do Pop, Madonna sempre foi o ídolo inalcançável. Aquela onde o verbo “tocar” nunca caminhou na mesma frase que a palavra “fã”. Não só ela, basta pensar em Freddie Mercury, Michael Jackson e tantos outros… Essa é uma tônica que se consolidou no universo pop especialmente durante os anos 90, quando dormir em portas de hotel aguardando um simples sinal do ídolo era pauta para jornais a frente de fãs histéricos. Agora pense no legado de todos esses artistas, não só musical, mas social… todos quebraram paradigmas até então e foram criticados por isso.

Quase três décadas depois tudo isso mudou. É possível acompanhar a rotina, às vezes até a intimidade, de qualquer ídolo pop em redes sociais com pequenos vídeos que levaram qualquer “inalcançável” para perto do público. Em outras palavras, de certa forma os deuses e deusas desceram do Olimpo, ou quase isso.

O que está em questão agora vai muito além da relação fã x artista proposta. Vivemos a era da informação em paralelo a um mundo cada vez mais intolerante e cheio de idas e vindas que nos levam a questionar até onde a música pode agir.

Recentemente, o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, chocou o mundo pela gravidade da situação. Basta abrir um site de notícias durante alguns minutos para ter a magnitude da situação e o quanto isso influencia o dia a dia da população, e nesse caso indo mais para o lado da música… dos fãs.

Na mesma semana em que Seun Kuti, Neneh Cherry e Morcheeba se apresentaram em SP, Katy Perry trouxe seu circo colorido e brilhante para algumas capitais do país. Em paralelo a isso o ótimo Huey lançava seu novo disco para algumas dezenas de pessoas. Em comum a indignação e a manifestação clara e indignada diante de algo tão nefasto. Para se ter ideia, a cantora americana levou ao palco a família de Marielle em um momento capaz de tirar lágrimas de pedra. Assista aqui.

É aí que entra a “presença de Anitta”. Adotando o silêncio em um primeiro momento, a artista carioca derrapou ao se manter em cima do muro diante da situação, dado que sua carreira foi construída justamente baseada na superação de quem saiu da favela e venceu na vida, vide o vídeo de Vai malandra, por exemplo. Isso obviamente gerou uma avalanche de críticas de seus seguidores. Considerada a verdadeira Rainha do Pop nacional, faltou sensibilidade ou coragem para quem teve a condição de gerenciar sua carreira e conduzir sua música para os quatro cantos do mundo?

O fato é que o Pop mudou. As novas Rainhas do Pop são outras e parecem sentir os efeitos disso ao caminharem de certa forma muito mais próximas de seus fãs. Vide Lady Gaga. Não é de hoje que a cantora responde seus fãs pela internet e participa de fóruns ao lado deles. Seu trabalho social é tamanho que uma rede social foi criada exclusivamente para discutirem problemas como depressão e homofobia. Um caso emblemático foi justamente quando a cantora enviou mensagem direta a um fã brasileiro, impedindo seu suicídio. É possível ler mais sobre esse assunto clicando aqui.

Basta alguns segundos pesquisando e nota-se que artistas contemporâneas estão cada vez mais envolvidas com tudo que cerca suas carreiras. Taylor Swift, que coleciona detratores pelos quatro cantos do mundo, já doou milhões para campanhas contra assédio, empoderamento e se envolveu com muitas outras causas sociais. Miley Cyrus também não mede esforços nesse sentido e não tem vergonha de chorar em entrevistas quando fala de assuntos delicados. Selena Gomez, Demi Lovato… não faltam vídeos e matérias com exemplos.

Um caso interessante é da gigante Beyoncé, talvez a mais próxima do trono onde Madonna parece estar disposta em nunca desocupar. Reunindo atributos que a tornaram uma das mais bem-sucedidas artistas dos últimos anos, a cantora americana conseguiu manter um patamar que a coloca como inalcançável pelos fãs, mas de modo algum longe deles.

Lemonade, seu último disco de estúdio, é um soco no estômago do conservadorismo e aborda inúmeras questões sociais. Não a toa seus videoclipes trouxeram uma reflexão profunda sobre o racismo nos Estados Unidos. Longe de que se poderia imaginar para alguém tão gigante, Beyoncé não está nem um pouco deslocada de sua realidade. E se suas redes sociais não apresentam tamanha intimidade, pode-se ter certeza que ela sabe muito bem quando precisa entrar em cena.

Voltamos ao Brasil. Voltamos para a questão Anitta.

Houveram muitas manifestações. Incontáveis atos e declarações. Uma gigante maioria que parece caminhar lado a lado com o público de um país que viveu uma ditadura capaz de arruinar com muitos fãs (e ídolos). E também houve o silêncio, para não dizer o oposto…

Independente de posições políticas, o silêncio de Anitta é só a fração de um problema que escancara toda uma classe, que com toda a tecnologia e feedback do público não pode se calar.

Anitta se tornou manchete por dar espaço à inúmeras minorias em seu palco, por ser alguém independente e, claro, por criar moda. Permanecer alheia à realidade que a cerca a colocou em uma saia justa capaz de botar em xeque seu papel no universo pop, mesmo que esse episódio seja esquecido. Como bem disse Guilherme Guedes em sua coluna, a Faixa Título, dentro do descoladíssimo Tenho mais discos que amigos, muitas vezes o silêncio é um posicionamento. E dos mais covardes.

Claro, Anitta não é a exclusividade desse texto. Não encontramos nenhuma manifestação de Roberto Carlos (talvez por já nem esperarmos mais nada de alguém que foi isento da realidade durante toda carreira) ou de tantos outros que poderiam ser novos “Dylans” ou “Springsteens”… Tivemos Chico, Caetano… mas isso não é novidade pela história desses e outros nomes que lutaram no passado e refletiram em suas letras tamanha indignação, tanto que seus versos seguem inspirando uma fatia considerável da chamada nova MPB, um legado muito maior que a música.

Certamente ninguém espera que Anitta se torne Joan Baez e caminhe ao lado de ativistas apenas por um ideal, mas sua isenção – e a da esmagadora classe artística – mostra que a música pop brasileira não entendeu sua real função dentro do contexto social.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.