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David Gilmour muito além do Pink Floyd

Quase uma década após seu último trabalho solo, On A Island, o lendário guitarrista David Gilmour balança novamente o mundo da música com o excelente Rattle That Lock, álbum que mostra que seus tempos de Pink Floyd ficaram realmente no passado...

Em 2014, quando lançou o álbum Endless River, resultado das chamadas “sessões atmosféricas” realizadas durante as gravações do álbum The Division Bell (1994), o guitarrista David Gilmour havia deixado muito claro para todos que esse seria o último registro inédito do Pink Floyd, decretando o fim das esperanças dos fãs por uma possível reunião com seus membros remanescentes.

Ainda que tal possibilidade fosse remota o suficiente para não causar euforia a cada ano, o luto por tal notícia foi superado meses depois, quando Gilmour anunciou o lançamento de seu quarto trabalho solo, Rattle That Lock, o primeiro em quase uma década. Disposto a realizar uma curta turnê, o lendário guitarrista provou sua relevância antes mesmo do lançamento do disco, no último mês de setembro. Especulações sobre a banda, o direcionamento musical e a turnê tomaram conta da mídia, que só conseguiu ter acesso ao álbum poucos dias antes de seu lançamento oficial, uma proeza em tempos atuais.

Enquanto isso, a faixa-título do disco apresentava ao mundo um Gilmour que em pouco lembrava o auge de sua ex-banda, entregando ao mundo um material mais acessível, mas de altíssimo nível técnico. Com solos venenosos e amparado por um coral de vozes, Rattle That Lock dividiu opiniões e gerou uma expectativa ainda maior até o lançamento do disco, gravado em boa parte do tempo no famoso Astoria, estúdio-barco de Gilmour na Inglaterra. Mesmo local onde trabalhos seminais como We Wish You Here (1975) foram realizados.

A história de Rattle That Lock não começou da noite para o dia. Ao longo dos últimos cinco anos, o ex-guitarrista do Pink Floyd já unia forças com outro fera das seis cordas, o renomado Phil Manzanera (ex-membro do grupo Roxy Music) para compor as primeiras faixas do vindouro álbum, anunciado no primeiro semestre de 2015.

Celebrado como um dos grandes lançamentos do ano, Rattle That Lock não decepciona e traz Gilmour no auge de sua forma técnica, mas frustra rapidamente àqueles que esperavam de seu mais recente trabalho um reflexo daquilo apresentado no último registro “acessível” do Pink Floyd, The Division Bell.

Se os primeiros acordes de 5 A.M. parecem engatilhar viagens intermináveis por camadas sonoras, não demora muito para que o disco mostre-se simplesmente como uma coleção de singles muito bem desenhados e que pouco se alongam em sua maioria, exceção feita à belíssima In Any Tongue e seus quase 7 minutos, seguramente a faixa mais Pink Floydiana do disco.

Em sua maioria, Rattle That Lock parece buscar em vertentes como o jazz e o folk um clima intimista quase surreal a um artista como David Gilmour. Faces of Stone, segundo single do disco, surge quase sussurrada para ganhar forma enquanto abre espaço para um dos solos mais bonitos do disco. Outro destaque é o blues de The Girl in the Yellow Dress, um dos momentos mais interessantes do álbum, que mesmo com um andamento cadenciado se desenvolve com uma facilidade quase espantosa, muito disso graças aos solos de um guitarrista que há décadas é visto como o mais elegante da história do rock.

Existe um veneno na guitarra de Gilmour que parece evocar a precisão de artistas como Django Reinhardt, o famoso guitarrista francês que levou o jazz a um padrão ainda mais técnico, e nomes como Hank Marvin e o bluesman Leadbelly, ídolo confesso do guitarrista. Cada faixa de Rattle That Lock parece clamar por uma necessidade de concentração para que possa transmitir o mesmo sentimento que um dia faixas como Comfortably Numb ou Pigs conseguiram no passado. E é esse o maior trunfo de um disco difícil para ouvidos fáceis.

Ao se completar as dez belas faixas de Rattle That Lock, o caminho percorrido em pouco lembra o Pink Floyd, mas a sensação de dever cumprido é a mesma. Administrando o baque sonoro criado pela intensa Today e a intimista And Them…, fica difícil encontrar algo que possa ser melhorado, mesmo que você não tenha esperado em nenhum momento por isso.

Fazendo uma analogia até certo ponto escabrosa, o lançamento de Gilmour soa similar àquela pizza que você pediu por telefone porque está com muita fome, mas quando a abre percebe que houve um engano e enviaram algo totalmente novo e que você não conhece. Porém quando você experimenta, vê que era melhor do que imaginava.

Com uma segurança que só a experiência e técnica de anos podem proporcionar, Gilmour sabe onde pisa e seu quarto álbum solo. Assim como o fez em On A Island e Smile anos atrás, o eterno guitarrista do Pink Floyd segue sendo uma referência e um lançamento com sua assinatura ainda é um bom motivo para celebrar. Não se trata do legado de álbuns clássicos ou a simbologia de ter empunhado a guitarra do Pink Floyd -trata-se de boa música, que pode ser conferida em seu mais alto grau.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.