Artigo

DJ Shadow e a introdução pelo fim

O ano de 2016 marca as duas décadas de lançamento de Endtroducing..., disco de estreia de DJ Shadow e que é considerado até hoje um dos maiores de todos os tempos. Marcado por colagens e uma estrutura caótica repleta de belas melodias, o álbum atinge sua maioridade como uma das trilhas definitivas dos insones mundo afora.

Em um ano onde álbuns como Roots, do Sepultura,  Odelay, de Beck, Travelling Without Moving, do Jamiroquai, e tantos outros foram lançados, fica difícil imaginar que o mundo da música apresentasse algo tão singular a ponto de marcar história naquele momento. Com Neil Young, Rush, REM, PJ Harvey, Tool e Marilyn Manson em evidência, despontar no mundo da música não era fácil, mas foi o que aconteceu com Endtroducing…, disco de estreia de DJ Shadow e que completa em 2016 seus vinte anos.

Eleito por diversos veículos como o álbum mais aclamado do ano de 1996, o disco de estreia de DJ Shadow realmente faz jus ao parágrafo anterior, repleto de nomes de artistas que moldaram a história da música. E o motivo justifica-se.

Endtroducing é considerado o primeiro disco lançado exclusivamente a partir de samples, ou de uma forma mais clara, a partir de sons de outros artistas, uma verdadeira revolução na época e artifício utilizado até hoje por grandes produtores.

Gravado a partir de um aparelho de sampler chamado Akai MPC60, o disco tem como fio condutor uma enormidade de referências que se unem em um repertório que explora nuances do hip hop e da soul music. Funcionando como uma grande loja de discos (que refletem muito bem o conceito da capa),  Endtroducing… mergulha com rara felicidade por caminhos até então desconexos, como se virasse de ponta-cabeça a razão pela qual suas pontas se conectam. Ou como seu próprio título sugere, realizando a introdução pelo fim.

Disco hoje considerado clássico, os caminhos que levam até Endtroducing… não nasceram “do nada”. Descoberto oito anos antes pela gravadora inglesa Mo’ Wax, DJ Shadow garantia boa diversão em San Francisco durante as festas onde apresentava mixagens que flutuavam entre vertentes como funk, rock, hip hop, ambient, jazz, soul.

Em uma dessas produções, What Does Your Soul Look Like alcançou destaque nos charts de música independente no Reino Unido e e fez com que o americano conhecesse um sujeito chamado de Dan the Automator. Nos anos seguintes ele seria conhecido principalmente por ser um dos fundadores do inovador grupo multimídia Gorillaz. E a partir dessa amizade nasceu Endtroducing….

Munido de samples de guitarras, vocais à capela de nomes obscuros da soul music e uma enormidade de material em mãos, DJ Shadow concentrou-se  em formar um repertório que ganhasse forma instantaneamente, oscilando entre o mais profundo soul e o verdadeiro caos a cada virada de faixa.

Após um pequeno discurso logo em seu início, Endtroducing… dá início a sua viagem com Building Steam with a Grain of Salt, faixa que toma forma através material resgatado a nomes obscuros da primeira metade do século, caso de Jeremy Storch e Mort Garson. Tudo isso em meio a uma entrevista e linhas de bateria com o visionário George Marsh, nascido em 1900. E assim começa uma viagem perturbadora e solitária através de 13 longas faixas que ultrapassam o total de uma hora de disco.

Com samples que vão de Metallica (Orion, em The Number Song) a Bjork (Possibly Maybe, em Mutual Slump), o álbum de estreia de DJ Shadow consegue proporcionar sensações díspares, mas condicionadas a uma solidão tão violenta quanto revoltante. Não a toa isso por vezes o aproximou do trip hop, vertente tão em voga na segunda metade da década de 90.

Existe uma melancolia implícita em Endtroducing…, uma busca por esperança de forma desesperada com se nada encaixasse. Esse sentimento surge pontuado por faixas como Midnight in a Perfect World, que apresenta os vocais de Marlena Shaw, uma das muitas pérolas da Chess Records. É quando a soul music encontra no underground do hip hop a mais rara perfeição.

Entre ícones e desconhecidos, músicos e cineastas, o álbum de estreia de DJ Shadow é um mergulho pela mente de um artista que conseguiu em pouco mais de uma hora manipular mídias ao seu bel prazer.

Apresentando um vasto conhecimento de cultura pop, Josh Davis (real nome de DJ Shadow) uniu jazz e metal, hip hop e soul e o cinema e o ambient de Brian Eno em um trabalho que serviu de trilha sonora para muitos insones mundo afora.

Essa referência como “trilha para insones” ganhou força pelas similaridades sonoras entre Endtroducing… e Blue Lines, álbum de estreia do Massive Attack, disco que é notavelmente conhecido como “a trilha definitiva da madrugada”. Além disso, posteriormente DJ Shadow lançaria o primeiro álbum do projeto UNKLE ao lado dos amigos James Lavelle e Tim Goldsworthy,  o que o associou de vez como um forte nome do trip hop. E assim estava consolidada a carreira do produtor Josh Davis.

Dez anos depois de seu lançamento, o disco de estreia de DJ Shadow foi lançado com material adicional e remixes, mas o mais importante é ver que após o lançamento do álbum, vinte anos atrás, ele próprio acabou servindo de base para muito do que o produtor americano faria nos anos seguintes. The Private Press (2002) e The Outsider (2006), por exemplo, carregam muito de Endtroducing…, especialmente nos nomes sampleados.

Com um novo álbum em pauta, The Mountain Will Fall, DJ Shadow hoje goza do prestígio de grandes produtores e rappers do mundo todo. Para se ter ideia, o conceituado duo Run the Jewels integra (fisicamente e não com samples) o line up do disco, que chegou ao mercado nesse 2016.

Não é exagero dizer que Endtroducing… foi um ponto de referência da música nos últimos anos. Em uma geração onde nomes como Moby e Aphex Twin revolucionaram o conceito de música eletrônica, DJ Shadow encontrou seu lugar com  um trabalho tão orgânico quanto multimídia. Um registro de quem sabia estar anos a frente duas décadas atrás e ser um verdadeiro artista de vanguarda.

About the author

Avatar

Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.