Do bairro Nova Descoberta, periferia do Recife, às páginas das publicações mais prestigiadas do mundo, o pianista Amaro Freitas é hoje um dos nomes mais festejados na cena jazzística, exatamente pelo fato de seu jazz não ser só jazz. Com “uma abordagem ao piano tão única que chega a ser surpreendente”, segundo a revista estadunidense Downbeat, a “bíblia” do jazz, Amaro é uma das principais atrações da edição 2021 do SESC Jazz, evento realizado na capital paulista e que marca o retorno gradual do público aos teatros.
Com três álbuns lançados, sendo o último deles o belíssimo Sankofa, Amaro vai trazer para o palco do lendário SESC Pompeia o show Ancestral Cumbe, uma reverência a alguns dos seus maiores ídolos: Milton Nascimento, Moacir Santos e Johnny Alf. Uma apresentação que nasce história e dá o pontapé inicial no festival, que acontece entre os dias 15 e 31 de outubro.
Tivemos a honra de conversar com Amaro Freitas antes dessa apresentação. Em uma lindíssima entrevista, mergulhamos em uma viagem que passa pelo jazz, a vida e tudo o que nos cerca. Uma aula de sensibilidade que inspira e motiva. A visão de quem sabe que a música vai muito além do que se ouve.
A expectativa pela a apresentação SESC Jazz 2021 e a volta dos eventos
Amaro Freitas: Para mim é um momento muito especial, nós temos uma relação muito bonita com o SESC, sabemos da importância dessa lugar. Os meus dois trabalhos foram lançados lá, o Sangue Negro e o Rasif. E falando especificamente do SESC Pompeia, foi a primeira casa onde lancei meu trabalho, ainda quando o festival chamava Jazz na Fábrica.
Durante a pandemia foi muito difícil para nós, brasileiros, e para o mundo em vários sentidos. E confesso que nesses últimos meses sentimos demais essa vontade de tocar em São Paulo, nesse lugar que tem uma estrutura muito boa para oferecer para a classe artística de modo geral. Sabemos da qualidade, do quanto é bom tocar nesse lugar.
É muito bom ver essa retomada. Esse é meu terceiro show com público, o primeiro foi no Instituto Ricardo Brennand, em Pernambuco, o segundo foi no Instituto Ling, em Porto Alegre, e agora esse terceiro show com plateia reduzida nos dá esperança de que está passando esse momento tão difícil. Principalmente porque a conexão vai acontecer quando a gente faz uma live, mas a conexão de vários corpos vibrando a mesma energia em um único espaço nos eleva a um novo nível de espiritualidade. Então acho que é exatamente isso que vai celebrado nesse encontro, a nossa conexão em um festival que é tão importante para a música instrumental brasileira, que está trazendo tanta gente boa. Acho que será demais!
A oportunidade de realizar um repertório baseado na obra de Moacir Santos, Milton Nascimento e Johnny Alf no SESC Jazz
Amaro Freitas: Eu acredito que o jazz em sua essência tem tudo a ver com a obra de Milton, Moacir Santos e Johnny Alf. Na realidade acho que a obra desses artistas transcendem para além do que é o jazz. É uma conexão extremamente forte com a ancestralidade, com a natureza, uma relação muito forte com a nossa existência.
Eu me sinto, quando observo essa ancestralidade, que sou como uma continuidade de toda uma geração que veio antes de mim no Brasil e até antes do Brasil. Muita coisa aconteceu para que hoje eu estivesse aqui. Quando eu falo de ancestralidade… quando em falo em memória se forma uma homenagem a personagens negros do nosso país, artistas negros. Não tem como pensar em memória e não pensar em nomes como Milton, Moacir Santos e Johnny Alf. Meu conterrâneo Moacir Santos… Milton, que tive o prazer de trabalhar e cresci ouvindo sua obra, e Johnny Alf, que não teve a reverência que deveria ter.
Considerado pré-bossa nova, ele foi um dos precursores da bossa e esse é um momento de agradecer a Johnny por tudo o que ele fez, agradecer ao Milton por tudo o que ele é, pela grandiosidade da obra que ele trouxe para esse mundo, e de agradecer a Moacir por transcrever de uma forma tão bela os ritmos afro-brasileiros e afro-nordestinos em uma orquestração incrível. São personagens que deveriam ser mais conhecidos e ter mais reverências. E acho que isso é uma lição minha, de reverenciar esses grandes artistas no meu trabalho. Falar dessa ancestralidade.
O isolamento e o processo de composição
Amaro Freitas: A música tá totalmente atrelada ao sentir. Totalmente atrelada às coisas da vida e isso tem tudo a ver com a filosofia africana, quando eu digo “eu sinto, logo existo” ao invés de “eu penso, logo existo”.
É tentarmos tirar esse preconceito de nossos olhares e julgar algo, de se permitir sentir e ter novas percepções. Em cada processo de disco eu aprendi muito com a vida. Ao mesmo tempo em que estava no estúdio, estudando de uma forma particular, eu estava estudando com os músicos que tocavam comigo. Aprendi que nesse processo de vida e disciplina do estudo a evolução aconteceria com o tempo.
Sankofa, assim como Sangue Negro e Rasif, precisaram de tempo para nascerem, para que eu pudesse entender sua ancestralidade, de aprender sobre várias histórias que eu não conhecia e ao mesmo tempo também processar todo esse conhecimento musical novo que me chegava. Sobre como tirar o som do piano de formas diferentes, de como se comportar com o trio, tudo isso precisa que a gente dedique-se um tempo para trazermos a melhor versão das músicas e executar da melhor forma aquilo que estamos nos propondo. Eu aprendi demais com o Sankofa e esse processo levou um tempo para acontecer.
A fragmentação do streaming
Amaro Freitas: Como tudo na vida, o streaming vai acabar nos oferecendo uma boa opção e também nos oferecer um lado que não seja tão interessante e tão legal. Ao mesmo tempo em que acaba sendo limitador no quesito informação para que o público possa se informar e se deleitar, ele também possibilita uma conexão com maior facilidade para o artista poder se lançar.
Fico pensando, por exemplo, nas várias playlists de jazz que existem e como meu jazz circula pelo mundo. Aí você acaba vendo o relatório do seu trabalho e descobre que tem uma galera te ouvindo no Japão, nos Estados Unidos.
A gente acaba tendo uma certa alcance por conta das plataformas que, claro, não só por isso, mas também por causa do mercado do vinil, no meu caso por estarmos relacionados com um selo britânico. O streaming possibilita essa conexão, essa possibilidade de lançar um disco em uma plataforma, mas também remove a chance de se ler um parágrafo sobre o trabalho, conhecer mais sobre os músicos, enfim… acho que são dois pontos de vista.
O papel do artista
Amaro Freitas: Acredito que o artista tenha uma função muito importante no nosso sistema de vida. Eu me recordo de uma entrevista com Geraldo Azevedo, quando ele foi preso por engano no período da ditadura e foi torturado, maltratado, tratado de uma forma horrível. Separaram ele, inclusive, de seu violão. E aí aqueles homens perceberam que Geraldo não era a pessoa que procuravam. Eles decidiram liberar ele, mas ficaram numa resenha de segurar e não fazer isso de cara. Aí deram um violão a ele, que começou a tocar.
Quando ele começou a fazer isso, aqueles homens começaram a chorar escutando Geraldo Azevedo a tocar. Ele diz na entrevista que ficou assustado, sem entender aquilo, aqueles homens que estavam ali maltratando ele, torturando ele, um trauma que ficou em sua vida, agora estavam chorando, dizendo “Eu amo a sua música”. Acho que isso ensina uma coisa muito preciosa, de que a música tem a capacidade de quebrar o coração duro do homem.
Quanto mais música, quanto mais arte, mais a gente possibilita um novo horizonte para a raça humana. Como diz Gilberto Gil, se a sua música tem a capacidade de suspender as pessoas e tirá-las desse chão duro, oferecendo leveza a elas, como se estivessem em um skate ou numa prancha de surf, isso pode nos dar a ilusão de que podemos ter dias melhores.
A arte é a ilusão do viver bem dentro desse sistema que vivemos, de viver melhor. É trazer o pôr-do-sol para quem não pode ver o pôr-do-sol. Nossa função é proporcionar através da música algo que também traga a cura a esse modelo de vida que vivemos.
Eu aprendo muito com isso. A faixa Vila Bela (N.E.: música do álbum Sankofa) é uma homenagem a Tereza de Benguela. Nessa música eu quero dar um abraço nela, agradecer por tudo o que ela fez. Ela liderou o quilombo de Vila Bela durante 20 anos e as decisões eram tomadas de forma coletiva. Tem uma coisa muito bonita nessa história que acontecia quando se lutava contra os bandeirantes e tomavam-lhe as armas. Quando isso acontecia elas eram transformadas em panelas. Isso é uma coisa muito simbólica e bonita pensando no dia de hoje, que é tirar aquilo que mata e transformar naquilo que alimenta.
A importância da inclusão no jazz e na vida
Amaro Freitas: A questão da inclusão é muito importante e me recordo de uma fala da Linn da Quebrada que me traz toda essa forma inteligente de pensar em inclusão.
A Linn diz “Eu não só quero que exista uma pessoa que me represente na Câmara dos deputados, eu quero autonomia para meu trabalho”.
Então a inclusão é importante para todos os setores. Que não só tenha um pianista negro num festival de jazz, mas mulheres negras, pessoas trans. Essa diversidade, esses vários mundos, mas não só os artistas. Que tenha um programador negro, que tenha um dono de companhia aérea LGBTQIA+, que tenha uma piloto de avião negra… eu acho que essa diversidade das possibilidades, de cada uma dessas bandeiras, o mais importante é que possamos trazer para esse setor uma autonomia.
Que tenhamos no SESC programadores LGBTQIA+ e em vários outros setores, em todos os lugares. Só quando houver essa condição é que teremos um lugar mais justo. Não adianta só o artista ocupar esse espaço e a gente não ter essa abertura para que pessoas atuem contratando esse artista. Só com essa autonomia teremos um mundo mais igual e isso não é o que acontece no Brasil nesse momento.
Os danos causados pela pandemia
Amaro Freitas: A pandemia trouxe danos gigantes para a música e dentro dela temos o artista que vai receber o cachê digno, o que vai receber um salario sofrido, com muito trabalho… temos vários lugares no ramo. Quem mais sofreu foram os músicos que acompanham e trabalham no circuito de bares, como funcionários de banda, de gravação… Foi muito doloroso ver eles procurarem empregos em outros lugares, como motoristas de aplicativo. Muitos tiveram que se reinventar para sustentar sua família. Temos que pensar que a música vai atuar de uma certa forma em cada região do país. Como é que funciona essa música no Nordeste, por exemplo?
Muitos amigos se desdobravam dando aulas porque esse isolamento fez com que muita gente acabasse aproveitando para aprender um novo instrumento enquanto estava em casa, mas aí a gente pensa que esse música precisa ter o mínimo d estrutura, uma boa câmera, celular ou computador… e acho que a pandemia vai afetou cada um de acordo com a proporção da necessidade daquele lugar. Foi um dano muito alto para muita gente. Viver de arte no Brasil já não é fácil e pensar que as poucas pessoas que conseguem viver de música já vivem em um circuito muito apertado, que você precisa ter muita concentração e foco porque não há uma fórmula de sucesso… imagine para quem não tem isso. A cena de Belém do Pará, de Manaus, o que eles fizeram, qual o caminho que eles percorreram para sobreviver.
Falo muito dessa minha localidade, Recife, São Lourenço da Mata, de quantos amigos que vi trabalhando com aplicativos ou até pedindo ajuda para comer. Os danos da pandemia realmente foram gigantescos.
A função social do jazz
Amaro Freitas: Quando a gente olha para o jazz, para a sua história, o jazz nasce dos povos negros, das pessoas que trabalhavam no campo. É um movimento revolucionário, que traz um novo lugar para a música.
Essa sonoridade, no Brasil, os negros não foram impedidos de tocar os instrumentos de percussão, então essa música negra brasileira vai ser levada para algum lugar. Na música negra americana eles não podiam tocar instrumentos de percussão, então essa música negra americana foi levada para o piano, para o trompete, e assim nasce esse gênero revolucionário, o jazz.
Quando olhamos para músicos revolucionários brasileiros como Dom Salvador, Moacir Santos, Johnny Alf… são personagens fundamentais para a construção de diversos movimentos, como o black brasileiro, a formação dos trios de jazz, da orquestração, da bossa-nova. Quando pensamos no que Johnny Alf fez… nós vemos ali que não se teve o devido crédito ou reconhecimento financeiro ou da obra como a branquitude brasileira.
O jazz é algo que embranqueceu no mundo todo, mas vejo hoje no Reino Unido, nos Estados Unidos e aqui um resgate à ancestralidade desse jazz. Inclusive, esse show que farei no SESC Jazz, o Ancestral Cumbe, é uma homenagem a esses grandes personagens negros da música brasileira. Acho que essa também é uma função social porque se trata de resgatar e trazer a memória desses artistas por alguém que é uma geração que nasce disso.
Eu sou fruto da periferia, sou fruto desse afro que chega aqui no Brasil, sou fruto do nordeste, da ancestralidade de Naná Vasconcellos, de Moacir Santos. Isso pulsa no meu coração e é fundamental para trazer memória, dar o devido respeito e ao mesmo tempo trazer a história da importância desses personagens negros na construção da bossa-nova e no jazz brasileiro.
Existem outras coisas também. Por exemplo, ao mesmo tempo em que toco nos principais clubes de jazz da Europa, em festivais, a gente também promoveu uma apresentação no sertão do Pajeú, um festival chamado Festa do Louro. Um evento de poesia onde eu quis muito levar o piano para esse festival, um lugar carente, onde tem uma população de pessoas simples e onde, se você se perguntar, quantas pessoas tiveram a chance de ver um piano, de tocar um piano, de ouvir a palavra piano… quando a gente se apresenta nesse festival, um evento que eu praticamente paguei para tocar, você descobre que nada é sobre dinheiro, é você fazer aquilo que você acredita ser a sua missão. Eu vi crianças que eram chamadas de “sem futuro” admiradas vendo aquilo e fico pensando nessa questão de acessibilidade a um instrumento. Aí ela vai decidir se ela vai querer ser um pianista, ou não, é uma outra questão, mas ela teve acesso ao piano. E a música tem a capacidade de entrar em nosso coração. Imagine a criança crescer com esse tipo de música, desse tipo de instrumento e ter acesso a ele.
Não se espera normalmente que saia um pianista de onde eu vim. Eu penso muito nisso. O meu posicionamento de morar em Pernambuco é um posicionamento político por isso. Sou um pianista negro, do estado de Pernambuco com muito orgulho. Isso traz toda uma representatividade para uma geração que virá depois de mim. Nós crescemos achando que para fazer música tínhamos que sair de nossa cidade, do nosso estado, e ir para São Paulo ou para fora do Brasil. E minha vontade de morar aqui é provar que podemos sim morar em nosso lugar de fala, nosso lugar de representatividade e ainda assim girar pelo mundo. É muito satisfatório quando eu volto de um show em NY ou na Suíça, quando volto de São Paulo ou Rio de Janeiro, e caminho pela minha cidade vendo vários jovens acreditando em mim. Pensando “nossa, ele estava em NY e hoje está aqui”, você passa a acreditar, você está em seu território e isso é muito “pensar” na questão social, de acessibilidade e representatividade.
A música para mim é isso, ter a capacidade de nos conectar com as coisas da vida, transformar tudo isso em notas, de trazer o pôr-do-sol e trazer, principalmente, esperança para as pessoas. É fazer elas acreditarem que, se você conseguiu, elas também são capazes.