Entrevista

Entrevista SAPATARIA

Desde que chegou aos ouvidos do público, o anúncio da primeira edição do festival Garotas à Frente já seria algo histórico pela presença no Brasil pela primeira vez do Pussy Riot, mas é algo que vai muito além e carrega em seu line up muito mais que música.

Além da presença do coletivo russo, o evento idealizado pela Powerline preparou uma série de atividades e shows que levantam a bandeira de uma causa que vai além daquilo que se ouve. Não é só um festival pronto para entreter o público, mas para mudar vidas. O lançamento do livro de Sarah Marcus falando do movimento Riot Girrrl e as atividades das curadoras do Girls Rock Camp são só parte de uma programação que conta ainda com as garotas do Sapataria, uma banda que você PRECISA ouvir.

Sim, o punk rock tão vibrante está lá, mas é muito mais que isso. Com letras que soam como um verdadeiro manifesto, a banda formada por Marina Garcia (guitarra), Isa Miranda (bateria), Zu Medeiros (vocal) e  Dan Cox (baixo) aborda temas referentes à lesbiandade e feminismo com intensidade impressionante, algo que pode ser conferido na faixa através das mídias do grupo, em https://spoti.fi/2xd7Iyd, https://sapataria.bandcamp.com e https://www.youtube.com/c/BandaSapataria.

A Sapataria é parte de uma cena que vai muito além do festival Garotas à Frente, por isso sua participação no festival da Powerline só engrandece um projeto nascido em 2016 e que segue firme levantando sua bandeira e jogando luz a uma causa que vai de encontro com uma sociedade que parece vier o avesso da evolução em tempos atuais.

Por isso, é mais do que uma honra para o Passagem de Som ter conversado com a banda, que falou sobre sua música, o festival e muitos outros assuntos em uma entrevista espetacular!

A primeira edição do festival Garotas à Frente e a primeira vinda do Pussy Riot ao Brasil
Marina Garcia: É emocionante ver uma banda como a Pussy Riot no Brasil, ainda mais levando em conta o momento político atual cercado de retrocesso. A passagem da banda pelo país nos ajuda a vislumbrar novas possibilidades de contestação e enfrentamento através da arte.

Minha expectativa é que o show seja chocante e questionador como toda carreira da Pussy Riot se provou ser. Além disso acredito que o evento como um todo celebra a união das mulheres na música e no punk/hardcore, isso é incrível já que o número de bandas com formação 100% feminina tem crescido e nada melhor do que comemorar!

Um paralelo entre o movimento Riot Grrrl dos anos 90 e a música do Sapataria hoje
Marina Garcia: Eu costumo traçar um paralelo pensando na influência não só do movimento Riot Grrrl, mas também do Queercore e seus questionamentos sobre sexualidade e gênero. Bandas como Bikini Kill serão sempre uma referência, mesmo que muitas vezes não sonora, a atitude delas nos marca.

Como cena, assim como nos anos 90, o surgimento de uma banda de garotas prova a outras que é possível tocar e se ver no palco. É incrível ver a quantidade de bandas que existiam quando a Sapataria foi formada no final de 2016 e como isso cresceu. Acredito que a divulgação on-line ajuda muito, mas a diferença se faz no presencial, ver um show e a energia de um grupo de mulheres no palco é ainda hoje um evento único. Muitas bandas ainda não gravaram, ou estão passando por esse processo agora, então é mais comum conhecer o som indo aos shows.

Isa Miranda: Pensar nos canais de comunicação atuais e tentar repensar um movimento já concretizado é perigoso. E, talvez, desnecessário. O movimento Riot Grrrl o é justamente no contexto em que nasceu. O importante é aprender com a historicidade dele pra fortificar um movimento aqui, pensado aqui e para o Brasil.

Zu Medeiros: Eu vejo muitas similaridades desse movimento atual com o Riot Grrrl, principalmente em seus princípios de auto-organização, de independência, de protagonismo absoluto feminino, produção de material representativo por formas autônomas e simples (produção de zines, patchs, estamparia de camisetas em silk, vídeos, rodas de conversa etc).

A importância de bandas como a Sapataria e a força de ver isso no palco
Marina Garcia: Quando eu decidi formar a banda com a Dan nós estávamos em um evento chamado Virada Sapatão, a temática lésbica sempre se fez muito presente em minha vida e com a banda não poderia ser diferente. A lesbianidade perpassa tudo, minhas relações familiares, meu emprego, como eu sou vista na rua e até minha idas ao banheiro (como relato em MSB – Movimento das Sem Banheiro). Cantar e gritar sobre isso é terapêutico, não me vejo carregando outra bandeira com tanta garra se não essa. E poder me expressar através da música e de cada show renova minha energia para enfrentar o preconceito.

Isa Miranda: Pra mim não é o subir em palco ou evento em si que muda vidas, mas olhar pra baixo e ver que tem alguém lá – que seja uma pessoa só – curtindo o som, se identificando, entendendo a mensagem. Nada é mais gratificante que isso.

Zu Medeiros: Apesar de achar que quebramos uma barreira por sermos lésbicas e de poucas bandas no Brasil falarem disso tão explicitamente, na verdade sinto que quebramos mais barreiras quando subimos no palco em eventos masculinos, quando pessoas que realmente não estão acostumadas com a luta lésbica ouvem o que temos a dizer. Em eventos feministas nos sentimos mais em casa, quebrando essa barreira junto do público, mais como um fortalecimento conjunto contra o que nos espera lá fora, no mundo real.

O feminismo na música pop
Isa Miranda: Na minha visão, a cultura pop é transformadora em até certo ponto. O hardcore/punk é revolucionário. O popular o é por conta do grande número de pessoas que intercepta qualquer transformação considerada “radical” está fora da norma social e não é bem-vinda. Cantoras pop podem contribuir com representatividade, usar sua influência para questões humanitárias e políticas, mas sempre será um risco para elas se posicionarem de maneira revolucionária. Risco que as minas do hardcore e punk, principalmente as que nunca saíram do underground, sempre correram e vão correr pelo ideal libertário ou qualquer outro do tipo.

Zu Medeiros: Acho o posicionamento delas cada vez mais engajado, o que é bom, porque uma certa base de feminismo se torna praticamente “senso comum” (na questão do respeito ao corpo, independência, etc), e não um posicionamento “radical” do qual as pessoas têm medo; mas justamente isso é também perigoso, porque esse feminismo se torna mercadológico, andando de mãos dadas com o padrão de beleza (na maioria das vezes), hipersexualização, a lógica do “lacre” e o “tombamento” ganhando mais espaço do que lutar contra realmente o que está matando e estuprando mulheres.

A importância de eventos como o Garotas à Frente e o fortalecimento dos festivais feministas
Marina Garcia: Acho extremamente importante formarmos espaços de fortalecimento durante esse momento político retrógrado. Vejo os festivais feministas como um lugar que se propõe aberto a debates, discussões, crescimento e fortalecimento. Quando pensamos no underground de uma maneira mais ampla é possível encontrar bandas de todas as visões políticas, inclusive bandas que infelizmente apoiam discursos como o do atual presidente. Os ratos do bueiro que estão mostrando as caras também estão entre nós, tocando nos mesmos espaços e divulgando sua leitura de mundo. É extremamente importante que as bandas se posicionem e não sejam isentas, só assim conseguimos combater na prática um discurso de ódio aos direitos humanos e minorias.

Há algum temor por protestos com a vinda do Pussy Riot?
Marina Garcia: Quando o evento foi divulgado pensei muito em relação a isso, levando em conta a onda de manifestações durante a vinda da Judith Butler ao Brasil acreditei que pudesse acontecer algo vindo de organizações conservadoras. Mas agora próximo ao dia do evento não senti nenhuma mobilização nesse sentido.

Isa Miranda: Eu não acho que há temor e, se tiver, usemos para tomar uma postura combativa. Temer não deve ser um receio de confronto e sim uma ferramenta de preparação pra ele.

A música como agente de mudança
Marina Garcia: Eu vejo a música como um ponto de partida para abrir discussões e levantar bandeiras. Durante a minha adolescência aprendi sobre veganismo através do som de diversas bandas straight-edge, não foi só a música que me fez aderir ao veganismo, mas foi importante para começar a me questionar sobre isso e mudar algumas posturas. Para mim arte e cultura são instrumentos para questionar padrões impostos. O punk rock surgiu como um som engajado e pode combater preconceitos trazendo debates que devem ser aprofundados de outras maneiras.

Isa Miranda: Fazer arte é uma coisa. Torná-la acessível e compreensiva as classes populares é outra. Ninguém faz “resistência” dentro de bolha social. Ninguém muda problemas estruturais capitalistas protestando artisticamente em ambiente elitista. A classe artística precisa de consciência sobre sua classe. Todos precisamos.

A importância de projetos como o Girls Rock Camp
Marina Garcia: Iniciativas como o Girls Rock Camp conseguem mudar de alguma maneira a visão das garotas sobre o poder que elas têm. É incrível ver um projeto onde logo cedo as meninas começam a aprender a importância da união feminina e do quanto elas também podem fazer o que quer que seja sem terem medo de fracassar unicamente por serem mulheres.

Zu Medeiros: A música “Levanta e Faz“, ainda não gravada, fala sobre a importância de eventos assim. Apesar de convivermos entre mulheres feministas, ainda é muito comum ouvir coisas como “não sei fazer “x” coisa, não tenho esse talento”, sendo que os homens não tiveram esse “ponto de partida” de desestímulo, apesar de inicialmente eles também não serem capazes inicialmente de fazer “x” coisa. Eles não tiveram toda uma sociedade ensinando que não seriam capazes ou que deveriam se preocupar com outras coisas mais importantes como estar magra e conseguir um namorado. Quebrar com esses fatores que criam a insegurança feminina é uma das mudanças mais urgentes da atualidade, na minha opinião.

A letra completa da música pode ser conferida em: https://www.vagalume.com.br/banda-sapataria/levanta-e-faz.html

Isa Miranda: A arte nunca vai se dissociar da política porque toda ação humana é política. Estão tentando extinguir ideais libertários e de esquerda da arte vendendo a ideia de neutralidade. Nenhum entretenimento é neutro e precisamos lutar contra os que tentam enganar as pessoas com essa falácia.

O papel da grande mídia e de festivais como o Lollapalooza sobre a participação da mulher
Marina Garcia: A grande mídia tem o papel de reportar notícias e gerar debates públicos, é importante que a discussão sobre a participação feminina nos espaços esteja em pauta ainda que de maneira tímida em muitos veículos. Eu acredito que esses assuntos ficarão mais comuns à medida que as redações se tornem mais plurais.

Zu Medeiros: O papel da grande mídia é justamente evidenciar essas questões, para que os festivais entendam a responsabilidade envolvida e a cobrança que o público apresenta de ver artistas plurais no palco, que o representem também. A publicação do Lollapalooza evidencia que eles entenderam a necessidade de posicionamento e o destaque que tem esse tipo de publicação tem (pois a maioria do público é pró-feminismo), mas não traduziram isso em ações concretas (ainda). Esse é um exemplo de apropriação mercadológica do feminismo para o marketing. De qualquer jeito, como a Marina disse, acredito que essa cena irá se reverter, pouco a pouco.

A Sapataria pós-festival
Marina Garcia: Pretendemos fazer um videoclipe da música MSB (Movimento das Sem Banheiro) e gravar nossas músicas novas que ainda não estão disponíveis em um segundo EP, como Ódio, Levanta e Faz, Existir e 175.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.