Entrevista

Entrevista: ZUDIZILLA

Nascido em Pelotas, Zudizilla despontou no cenário nacional em 2015 com a alcunha de “Maior rapper do Rio Grande do Sul”. Não é exagero. Seu primeiro álbum, “Faça a coisa certa”, apresentou ao país uma musicalidade fruto de muita pesquisa e um engajamento que até hoje permeia sua carreira. Tanto quanto uma luta que busca jogar luz à presença do povo negro no estado, Zudizilla proporciona uma reflexão cada vez mais necessária, explícita de forma ainda mais clara em seu novo álbum, Zulu Vol. 2: De Cesar a Cristo, uma continuação de Zulu Vol.1 De Onde Eu Possa Alcançar o Céu Sem Deixar o Chão.

Atualmente vivendo em São Paulo, Zudizilla assina a produção do disco, que conta com 12 faixas e participações que vão de beatmakers aos parceiros Emicida, Coruja BC1 e Joabe Reis. Contemplado pelo edital Natura Musical 2020, aproveitou a oportunidade para também trabalhar no curta Vozes do Silêncio, um trabalho multimídia e extremamente necessário.

Mais que um rapper, Zudizilla é um daqueles nomes que a sociedade precisa cada vez mais. Pesquisador, compositor, músico. Um ativista nato que faz de sua arte o passaporte para muitas outras histórias. Um nome do qual o Passagem de Som se orgulha muito de ter conversado e que abaixo fala, não só de seu novo álbum, mas de questões que permeiam o social e o pandemônio em que ele, eu e você vivemos. Uma grande entrevista com quem tem um olhar muito único sobre o mundo da música.

A produção de Zulu Vol. 2: De Cesar a Cristo e sua carga emocional

Zudizilla: A carga emocional desse álbum é maior porque ele entrega o objetivo principal da saga, que é a preocupação com minha família em detrimento com minha preocupação social. A frase da segunda parte da faixa “AFORTUNADO” explica bem isso quando questiona “quem está disposto a deixar quem ama pelo que mais ama? E quem está disposto a deixar o que ama por quem mais ama?”. Essa frase revela que o corre, em sequência do Vol. 1, que busca um lugar confortável entre o céu e o chão, especifica que o progresso terá de vir a qualquer custo e pra isso concessões serão feitas.

A coisa que eu mais amo é arte e a pessoa que mais amo é minha mãe. O mercado da música me obriga a ignorar a existência de um pela resistência do outro. Por isso,  a analogia de César e Cristo. É um disco que fala sobre formas de poder, seja pela guerra ou pelo amor, e a motivação de alcançar esse poder é justamente a pessoa que mais sofre e sofreu com minha busca desenfreada por ele. Minha mãe.

O edital Natura Musical e a valorização da arte

Zudizilla: Eu fui contemplado pelo edital Natura Musical em 2019 e estou conseguindo executar em 2022. Meu projeto era de circulação do Vol. 1 e vai se tornar possível circular os dois graças ao edital. Mas na questão do disco, a Natura Musical não teve interferência, apesar de tornar possível a execução do material visual (filme) Vozes do Silêncio, que corrobora a proposta do disco.

     Vivemos o pior período possível para vive de arte. Ela tem sido cruelmente cerceada e, ao mesmo tempo, vemos o mercado musical – em específico – em seu período mais rentável financeiramente, mas que não reflete em produções que tenham importância social, em minha humilde opinião.

A arte se tornou um patrimônio privado e que dá retorno individual. Dependendo de onde esses recursos estão sendo direcionados, eu não posso vir aqui e pautar qualidade de conteúdo. Mas eu vejo diversos artistas que tinham esse subsídio pra manter a arte que será importante pro futuro sendo sabotados; e essa questão a gente só vai entender mais pra frente. É doido.

 A identidade musical, as influências e o processo de produção

Zudizilla: Eu “cantarolo” flows antes de escrever. Eu descubro a estrutura do que vou falar antes de falar e depois é cavucar em minha mente o melhor assunto que reflete a “cor” que essa mesma melodia proporciona.

Tem músicas desse disco que nasceram só com a letra, em forma de poesia, assim como existem músicas que nasceram só com o ritmo. Essa questão é muito pertinente porque ela automaticamente responde uma pergunta que sempre me fazem sobre a quantidade de beatmakers e produtores envolvidos, é por isso que eu opto por ter mais de um produtor: eu gosto de ir pra todos os lados possíveis e, ao invés de ir pro lado que o instrumental aponta, trago todos os instrumentais pro meu caminho, que é a ideia de conversão de ABSURDAMENTE TUDO em rap clássico, raw e genuíno. É por isso que tu enxerga Guru Jazzmatazz ali. Ele realmente consta. (N.E.: na formulação da pergunta, me referi à musicalidade de Zudizilla comparada a grandes nomes como o do artista americano de hip hop Guru).

 A obra completa x plataformas de streaming

Zudizilla: Não vejo como uma batalha tudo isso, mas uma opção estética e parte muito do que eu tenho como influência. Eu gosto de álbuns que me levam para uma atmosfera completa e acho que o streaming é quem deveria se curvar a isso. Hoje essa questão é um grande oroborus (conceito que reflete o eterno retorno, a espiral da evolução) e já não se sabe de quem é a responsabilidade pelo esvaziamento e desconexão de projetos tidos como discos, mas também acho que é uma grande perda de tempo pensar sobre isso. Eu só acredito que unificar a ideia de álbuns completos ou de compilados de singles como a práxis comum é que está equivocada. Na verdade existe e há de ser garantido espaço pros dois.

          Mas eu SÓ gosto de álbuns com princípio, meio e fim e talvez seja porque gosto de livros, em um mundo onde se prefere post, e post é curto (risos).

A força do multimídia no rap e a comparação com os anos 90

Zudizilla: Cara, acho que em matéria de potência artística nada é mais forte que 90 (outras pessoas dirão 80, 70, e assim por diante). Eu acredito que a democratização dos meios de produção de agora nos permite explorar mais possibilidades de se expressar.

O filme Vozes do Silêncio não serve ao disco, mas o disco serve ao filme como uma trilha sonora original. O roteiro vem de um texto de Winnie Bueno que eu topei no Vol.1 e aí entra o edital da Natura. Esse projeto é a entrega que eu tenho que dar por ter sido aprovado no edital de circulação e, ao invés de sucatear a contrapartida como geral faz, potencializei também essa oportunidade pra trazer para o Brasil algo que a trilogia Zulu se propõe, que é de trazer visibilidade para as problemáticas étnicas sulistas.

O curta Vozes do Silêncio

Zudizilla: Vozes do silêncio é um livro de Agostinho Dalla Vechia, que busca sanar a lacuna existente na história negra gaúcha de não ter documentos oficiais registrando suas histórias. Nesse livro minha bisavó é uma das entrevistadas e ele busca relatos de pessoas que tiveram contato com o período escravagista ainda que seja com seus parentes próximos.

Entender que eu tinha muito perto de mim uma pessoa que só não era propriedade de ninguém pela lei do ventre livre, me situou no mundo, assim como quero que meu filho entenda o que me formou, para que assim ele consiga construir um futuro a partir de um legado que se constrói desde o início da invasão dessas terras aqui, mas que só consta como registro o colonizador.

        Existe um provérbio africano que diz que “enquanto os leões não contarem suas histórias, o caçador sempre será glorificado”.

        É hora dos leões falarem.

A alcunha de “maior rapper do Sul”

Zudizilla: Não me incomoda ser visto dessa forma porque eu procuro isso, não incessantemente, mas eu sei que esse lugar precisa ser ocupado e por alguém que não queira parecer com outras dinâmicas.

Eu tenho uma peculiaridade devido a minha cidade, Pelotas, a 3h30 da capital, e que por essa distância aprendeu a ser auto-suficiente artisticamente: nós não nós dobramos as práticas nacionais de rap e não é porque não gostamos, mas porque não faz sentido lá. Estamos em outro lugar. A cena do Sul é potente e sempre foi, mas acredito que fez muitas negociações durante o tempo e nem sempre elas foram positivas para os agentes da época, mas necessárias para que eu estivesse aqui agora.

Muita gente teve que fazer o “rap nacional” pra que eu pudesse fazer o meu rap e eu coloco rap nacional entre aspas só porque o rap nacional, apesar de muito característico, não é um só.

Eu quero e busco ser a grande referência do meu estado porque assim eu vou ter meu lugar no cenário nacional grifado pra sempre. Eu não estou competindo com ninguém, exceto comigo mesmo, e a cada disco, EP ou single eu quero alcançar maiores espaços e ser incontestavelmente essa voz que fala do Sul, ainda que existam outras de lá tão potentes quanto a minha e que assim que eu cansar vai tomar esse lugar. Dessa forma eu garanto que o Sul sempre vai ter um representante, e que ele pra isso tenha que elevar suas capacidades ao máximo.

Não estou falando de flow e nem de instrumental: falo de arte.

A participação no disco de Emicida, Coruja e Joabe. E o intercâmbio criativo no rap

Zudizilla: Ter essas participações, em termos, foi decepcionante porque era para ter mais nomes que eu sinceramente não entendi o porquê de relutar em não participarem, já que é um trabalho que nitidamente carrega a força de outras pessoas pretas e invisíveis do mesmo Brasil. Mas tudo bem, porque assim como foi meio broxante, eu confirmei mais uma vez o porquê do Emicida ser tão grande. Coruja e Joabe são amigos próximos e uma das metas desse disco é linkar grandes nomes com artistas foda, que não conseguem furar a bolha, alguns já com mais de 20 anos de carreira, e me sinto privilegiado pra criar essas pontes. Mas essa relação de intercâmbio do rap, que deveria ser fácil, nesse momento tem sido muito complexa. Tem discursos que eu percebi que não se fazem efetivos fora das batidas, mas como eu disse, está tudo bem. São escolhas. Foda é que o mundo gira.

A arte contra o racismo

Zudizilla: Eu ainda acredito na arte e, especificamente, no rap como forma de emancipar mentes e instruir as gerações futuras. Outra questão que nos empurrou pra esse momento é nossa questão identitária. Essa bagunça chamada Brasil começou a dar resultado e esse terrível período é um resultado previsível de toda a estrutura que fundamenta o pensamento nacional.

E sim, estamos tendo ondas semelhantes pelo mundo afora, mas o Brasil teve possibilidades incríveis de sair desse lugar, mas o fato de não nos enxergamos no espelho fez com que a população acreditasse naquele arquétipo de Salvador e condenasse à morte todos aqueles com possibilidade de salvar. Isso só vai mudar com o tempo e vai levar tempo, mas também vai mudar, eu confio no meu filho.

A mensagem do artista ao público e a música como entretenimento

Zudizilla: O artista que cede a essas dinâmicas de entretenimento já tinha essa meta, é meio inocente a gente achar que o artista x ou y se perdeu. Na verdade, ele só esperava esse momento e está tudo bem.

O problema da difusão e do enfraquecimento da narrativa do rap não é o rap, nem o mercado e nem o mercado musical: é simplesmente o sistema econômico que nos permite vender tudo e o único problema é que não somos os donos do lucro daquilo que produzimos.

As grandes empresas de streaming e os selos tão ganhando uma grana legal explorando os sonhos de artistas menores, que às vezes emplacam um hit de tik tok e somem, enquanto o mesmo empreendimento que possibilitou esse artista aparecer continua caçando talentos parecidos com um hit apenas por todos os cantos e isso é meio Matrix (risos).

Zudizilla daqui para a frente

Zudizilla: Eu pretendo lançar o Vol. 3 com um espaço de tempo menor que a demora do 1 para o 2. Tenho minhas produções musicais, que vão ser vistas em vozes de outros grandes artistas, assim como letras, e cada vez mais me tornarei onipresente no cenário; e nem sempre será cantando e não há como ninguém evitar isso.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.