Sala Especial

Gary Clark Jr e a função social do blues

Em This Land, terceiro álbum da carreira de Gary Clark Jr, tudo é urgente e imediato! Assumindo finalmente sua posição de protagonista, o guitarrista americano exalta o blues muito além da tradicional lamentação que estereotipa o gênero e toca na ferida da sociedade americana explorando temas como racismo e depressão em faixas poderosas, exaltando a força de um gênero musical que – ao lado do hip hop - é hoje uma ferramenta ainda mais poderosa de mudança social!

Quem repara atentamente ao título do terceiro álbum de Gary Clark Jr já sabe que vem chumbo grosso pela frente. This Land, disco que sucede o razoável The Story of Sonny Boy Slim (2015), é de longe o maior divisor de águas da carreira do guitarrista, que escolheu o título do disco inspirado em nada menos que a canção This Land Is Your Land, de Woody Guthrie, um verdadeiro patrimônio do folk e canção tão tradicional quanto o hino americano.

E This Land Is Your Land não é qualquer música. Fala sobre integração, sobre igualdade. basta ler aos primeiros versos dela para sentir que o guitarrista americano está disposto a fazer em um trabalho que é definitivo para sua carreira e isso vai muito além a questão musical propriamente dita, Em This Land o público está diante de um trabalho capaz de levar o blues a um novo patamar, se estabelecendo no século XXI como um influente agente social, tal qual o hip hop, enquanto expõe as feridas da sociedade americana.

Esta terra é sua terra, esta terra é minha terra

Da Califórnia à Ilha de Nova York

Da floresta de Redwood para as Correntes do Golfo

Esta terra foi feita para você e para mim

This Land is Your Land – Woody Guthrie

O primeiro single – e videoclipe – do disco, traz a sua faixa-título e foi lançado no mês de janeiro, dando um autêntico alerta de que Gary Clark estava pronto para assumir seu protagonismo na música contemporânea. Tão chocante quanto o premiadíssimo This Is America, de Childish Gambino, e Formation, de Beyoncé, escancara o racismo “velado” da sociedade americana, critica o governo Trump e o comportamento velado de regiões que formam o Bible Belt (Cinturão da Bíblia) nos Estados Unidos, caso do Texas, que acabou inspirando a canção.

A própria direção musical de This Land já sugeria um disco muito mais agudo que The Story of Sonny Boy Slim, que apresentou um mergulho mais contemplativo do guitarrista na soul music. Em seu terceiro álbum essa tendência se mantém, mas a intensidade do disco impressiona desde o início, tal qual suas composições.

Essa direção escolhida por Gary Clark leva para sua música muito mais que elementos de soul music. Veloz em muitos momentos, agudo e barulhento, explora do rock ao hip hop, tem ares de pop e muitas vezes parece trazer para sua obra tantas vertentes que cada faixa parece revelar um novo lado de sua personalidade.

E são diversos sentimentos nesse processo. A solidão em I Walk Alone (Eu me movo na escuridão porque a escuridão sempre me acalma / É natural / Mas eu não quero ficar sozinho), a repressão e o racismo em Got to Get Up (Eles dizem, eles dizem, eles dizem – Você sabe do que eu estou falando… Eles dizem, eles dizem, eles dizem / Mate todos eles, mate todos, mate todos eles) e o orgulho em I Got My Eyes on You (Retrocessos e falhas / Eu costumava me envergonhar, mas eu venci / Eu sempre conquisto).

E essa inspiração vai muito além do processo de canalização de seus sentimentos. Musicalmente cada faixa impressiona por incorporar um novo elemento, tudo isso sem abandonar a veia blues que deu forma ao som do guitarrista quando ainda abria os shows de Eric Clapton, inclusive no Brasil.

Essa é a essência de This Land. Há um mote único que integra o blues ao passado e o presente sem deixar de lado sua origem. Tal qual uma verdadeira avalanche de lançamentos do gênero que vem se materializando nos últimos anos, e inclua aí nomes como Eric Gales e Cedric Burnside, o novo disco de Gary Clark soa como um tiro certeiro na trilha que mostra a evolução do blues no século XXI. Da pop When I´m Gone até a grooveada The Guitar Man, uma verdadeira aula de música.

Muito mais que uma vertente solitária e de lamentação, a música do guitarrista americano em seu terceiro disco conclama uma integração que só o hip hop foi capaz de proporcionar nos últimos anos. A consequência disso, não a toa, foi se tornar a galinha de ovos de ouro da indústria fonográfica, alcançando um trânsito que o permite dialogar com o público desde os centros periféricos até um festival megalomaníaco como o Lollapalooza. E um bom exemplo disso é o rapper Kendrick Lamar, headliner da edição brasileiro do evento em 2019. Coincidentemente Gary Clark também teve a oportunidade de participar de uma das edições, ainda que como coadjuvante e com um curto show.

O blues em This Land sintoniza o gênero aos tempos atuais tanto musicalmente como ideologicamente. E nunca o título do último disco de Buddy Guy soou tão real como diante do atual momento do gênero e ascensão de artistas como Gary Clarke. The Blues Is Alive and Well, o blues vai muito bem e mais vivo do que nunca.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.