Sala Especial

Grateful Dead – Morto e agradecido

Após cinco épicas apresentações, membros remanescentes do lendário Grateful Dead encerraram de forma emocionante e digna sua história cinquentenária, ensinando às novas gerações que ainda pouco se compreende sobre a relação criada entre fã e artista.

Foram cinco shows e uma comoção poucas vezes vista nos últimos anos no mundo da música. Talvez pouco sentida além do território americano, o adeus definitivo do Grateful Dead, ícone da década de 60, trouxe em pouco mais de seis meses várias lições ao mundo da música.

Não se trata de uma nostalgia barata, afinal, bandas se despedem dos palcos muitas vezes em uma pura jogada de marketing, revelada pouco tempo depois. Porém, no caso da banda americana, que sempre foi uma referência para toda cultura hippie, uma verdadeira avalanche de sentimentos transformou suas apresentações em uma espécie de culto de despedida.

Sem seu líder, o icônico vocalista e Jerry Garcia, falecido em 1995, além do emblemático baterista Ronald C. “Pigpen” McKernan, Bob Weir, Phil Lesh, Mickey Hart e Bill Kreutzmann se uniram ao excelente guitarrista Trey Anastasio (Phish) e ao não menos lendário pianista Bruce Hornsby para entoar uma vez mais algumas das faixas que estão enraizadas na contracultura americana.

Com um repertório que transitou por toda extensa discografia do grupo (estima-se que com os álbuns ao vivo o Grateful Dead tenha lançado mais de 300 álbuns), a curta turnê Fare The Well escreveu o último capítulo daquela que talvez tenha sido a relação mais íntima entre fãs e artista ao longo da história.

Longe do estrelismo que cerca as figuras do universo pop, nenhum integrante do Grateful Dead nunca foi assediado ou fruto de grande histeria por parte do público. Oriundos de uma geração onde a música sempre caminhou a frente das grandes produções, o grupo foi capaz de criar uma legião de seguidores, conhecidos popularmente como Deadheads, que passaram a acompanhar sua música por todo território americano.

Nascida no epicentro do movimento hippie no início da década de 60, em San Francisco, o Grateful Dead sempre teve uma relação íntima com o chamado movimento psicodélico. Porém sua música sempre conseguiu manter um nível elevado o suficiente para transformar seu trabalho em algo icônico, inspirando uma geração de bandas nos anos seguintes.

Sim, seus integrantes fizeram parte dos primeiros “acid tests” promovidos por Albert Hoffmann (criador do LSD) na década de 60, mas a psicodelia implantada pelo grupo sempre nasceu da fusão entre folk, jazz, rock e a mágica capacidade de proporcionar jams que renderiam shows de quase 5h num piscar de olhos.

Para as apresentações finais, o Grateful Dead conseguiu trazer de volta tudo o que cada Deadhead esperava ter vivido há vinte, trinta, quarenta ou cinquenta anos atrás. Do processo para obtenção de ingressos através de cartas (sim, cartas físicas, aquelas que você envia pelo correio) e a possibilidade dos fãs criarem artes inspiradas em suas músicas, tudo foi criado de uma forma que só restaria à banda fazer a magia acontecer pela última vez… e ela aconteceu.

Com apresentações de quase 4 horas em Santa Clara, na Califórnia, e em Chicago, uma verdadeira avalanche de postagens inundaram as redes sociais. A comoção foi tamanha que foi capaz de superar nos Trending Topics americanos a hashtag #LoveWin, em destaque um dia após o decreto histórico de Barack Obama liberando o casamento gay nos Estados Unidos. A partir do início da série final de shows o território americano era do Grateful Dead, era da hashtah #GD50 e #dead50.

Impensável no auge da banda durante a década de 70, a internet uniu ainda mais os Deadheads no século XXI. Com a possibilidade de acompanhar cada apresentação online, fãs desembolsaram entre U$ 20 e U$ 29 em um sistema de pay-per-view.

Durante os meses que antecederam os shows, a possibilidade de criar online um painel de memórias com as experiências de cada fã da banda e o hotsite especial criado para os shows de despedida se tornaram uma espécie de livro aberto do grupo, que serviu bem de termômetro para as apresentações e diversas ações e promoções ao velho estilo da banda foram realizadas.

Também não foi necessário estampar algumas das maiores revistas do mundo para promover os shows ou justificar os valores dos ingressos, mas ainda assim o Grateful Dead recebeu a honra de ser capa de uma edição da Rolling Stone, celebrando seus 50 anos. Sem ter saído muitas vezes dos Estados Unidos, o grupo americano não precisou ir atrás de seus fãs, afinal, eles já os seguiam como uma verdadeira família.

E essa ligação sempre foi seu maior trunfo em toda sua história, tornando difícil definir onde começava um e terminava o outro. A própria banda contava com o público para registrar a maior quantidade de material possível. Já na década de 60 era tradicional ver fãs acompanhados de verdadeiros varais de microfones improvisados para captar em detalhes as longas apresentações da banda. Nessa ocasião não foi diferente e cada integrante pediu que os fãs gerassem a maior quantidade de material possível para publicações futuras.

Também não foi necessária nenhuma mega produção para que tudo acontecesse. Era necessário apenas a música e isso poderia acontecer no maior estádio do país tanto quanto na caçamba de um caminhão ou em um vagão de trem, como quando Jerry Garcia convocou Buddy Guy, Janis Joplin e a The Band para excursionar pelo Canadá com o Festival Express.

Mesmo projetos como o Dead & Co, que inclui em seu line up o renomado guitarrista John Mayer, ao lado de membros dos Deads e da Allman Brothers Band, parecem não ofuscar a história que se encerrou no último mês de julho. A própria carreira de Phil Lesh – que atualmente luta contra um câncer – segue firme com suas Terrapin Crossroads na medida em que projetos como a Dark Star Orchestra seguem difundindo o legado da banda americana por toda a América.

Histórias não faltarão e os próximos anos revelarão algumas das muitas que se perderam pelo tempo, mas permanecem na memória dos fãs assim como cada longo solo que se perde no horizonte. Foram 50 anos e hoje mais do que nunca o nome da banda parece ter ganho um sentido literal, afinal, o Grateful Dead agora está morto, mas seus fãs – mais do que nunca – sempre se sentirão plenamente agradecidos.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.