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IRA! A banda que disse não

Lançado há três décadas e considerado o maior sucesso comercial da carreira do Ira!, Vivendo e Não Aprendendo mostra que envelheceu com dignidade e mostra que certas feridas nunca se fecham quando se tem atitude.

Dono de alguns dos maiores clássicos da história do rock nacional, os paulistas do Ira! nunca gozaram do mesmo prestígio de bandas como os conterrâneos – e rivais – dos Titãs. Também não tiveram uma quantidade de hits em um único disco como Selvagem, dos Paralamas do Sucesso, que lançado também em 1986. Ainda assim, o álbum Vivendo e Não Aprendendo, que completa 30 anos em 2016, é seguramente um dos discos mais aclamados de uma banda que aprendeu a dizer não, mesmo que isso lhe custasse um provável futuro de glórias no rock nacional.

Hoje parte de uma tríade de álbuns que se tornaram a maior bandeira da carreira do Ira!, ao lado de Mudança de Comportamento (1985) e Psicoacústica (1988), Vivendo e não Aprendendo foi a consolidação de uma banda que sempre caminhou ideologicamente na contramão da época. Ou em outras palavras, nem o próprio Ira! teve ideia, naquele momento, do quão grande era.

Depois do sucesso de Mudança de Comportamento, disco que apresentava, além de sua faixa-título, clássicos como Tolices e Núcleo Base, o Ira! finalmente se encarava como um grupo de rock. Antes disso, era comum cada integrante revezar sua posição em pelo menos mais um par de bandas, onde dividiam sua agenda e acabavam até por comprometer o andamento do Ira!, que já cumpria contrato com a WEA.

Depois de trabalhar com Pena Schimdt na produção de seu primeiro disco, a bola da vez da WEA foi enviada ao estúdio Nas Nuvens, no Rio de Janeiro, para trabalhar com o renomado Peninha, que se encarregou da produção de Vivendo e não Aprendendo. Em conflito constante com Edgar Scandurra, custou até que o disco começasse a ganhar forma. Acusado de tentar desqualificar a sonoridade buscada pela banda, não demorou para que o Ira! afastasse da produção do disco um dos mais consagrados nomes da época, recorrendo novamente a Pena para a função.

O passo seguinte dizia respeito ao repertório. Lançadas dois anos antes em compacto, Gritos na Multidão e Pobre Paulista deveria estar no tracklist final do disco, mas a banda não concordava em refazer a música. Elas só foram incluídas após a decisão de serem inseridas em formato ao vivo, inseridas no fim do álbum e impedindo a ideia inicial da gravadora em usá-las como música de trabalho durante o início da divulgação do disco.

Mesmo com todos os problemas, Vivendo e Não Aprendendo logo se tornou um sucesso. Amparado por faixas como Envelheço na Cidade e Dias de Luta, que se tornariam hinos de uma geração, Flores em Você foi inserida como tema da novela O Outro, da Rede Globo, mas o Ira! não concordava com tudo o que vinha pela frente.

As sequentes exigências por aparições na TV pela WEA levou o grupo paulista a uma apresentação no popular Cassino do Chacrinha ao lado de nomes como Paralamas do Sucesso, Titãs e Capital Inicial, onde deveria se apresentar em formato de playback e com gorros de Papai Noel. Após ver o cantor pop Byafra ser escrachado pelo apresentador no backstage, o Ira! simplesmente abandonou o programa e foi embora. O fato é narrado em detalhes por Nasi em sua biografia A Ira de Nasi, lançada em 2012.

Mesmo irritando a gravadora e a emissora de maior visibilidade no país, o Ira! foi escalado para tocar no Hollywood Rock, evento que tinha em seu line up nomes como Titãs e Pretenders na mesma data.

Com problemas técnicos durante o show, Edgar e Nasi e criticaram abertamente a organização do festival. A bandeira levantada pela dupla foi de que as condições dadas aos artistas nacionais eram inferiores aos artistas do exterior, algo que internamente revoltava outras bandas brasileiras. Sozinhos nessa luta, o espólio dessa reinvindicação coube somente à banda paulista, que mesmo se apresentando na perna paulista do festival passou a não ser mais convidada para nenhum grande evento. O Ira! só voltaria a ser chamado para um festival no Rock in Rio 2001, quando diversas bandas brasileiras boicotaram o festival pelos mesmos motivos.

Ainda assim, Vivendo e não Aprendendo garantiu bons números para a WEA e consolidou o Ira! como uma das mais importantes bandas da cena nacional. Com vendagem de aproximadamente 250 mil cópias, se tornou o grande êxito da banda, que ainda encararia anos depois a polêmica com Pobre Paulista, acusada de promover o fascismo.

Após seu célebre lançamento nunca mais o Ira! conseguiu atingir números tão expressivos. O experimental – e não reconhecido até hoje como um dos mais ousados discos da década de 80 – Psicoacústica foi o primeiro capítulo de uma série de discos que acabariam passando em branco pelo grande público.

Faixas como Nas Ruas, Vitrine Viva e Casa de Papel não foram trabalhadas na época do lançamento do disco, mas caíram no gosto do público e vez por outra figuram no setlist dos shows da reunião do grupo, que se separou em 2007. Os três principais discos do Ira! foram relançados no último ano para comemorar a reunião de Edgar e Nasi para a turnê Núcleo Base, resgatando o já difícil catálogo da banda.

Vivendo e Não Aprendendo envelheceu com dignidade e até hoje segue como um marco do rock nacional por inúmeros motivos, mas talvez o maior deles seja justamente pela ironia de seu título frente a tudo o que se seguiu na época de seu lançamento.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.