Sala Especial

Max Roach e a importância social do Jazz

Lançado em 1960, We Insist! não é só um disco produzido pelo baterista Max Roach e o compositor e ativista Oscar Brown, mas o retrato de um triste recorte do século XX, onde o jazz extrapola sua função social e reafirma sua condição de música/manifesto em um dos discos mais importantes da história do gênero.

Existem discos que fazem história pelos mais diversos motivos. Falando de jazz, três deles são fáceis de lembrar. A Love Supreme, de John Coltrane, com sua montanha-russa dinâmica e pregação dominical, A Kind of Blue, de Miles Davis, que mostra o poder de se criar música pela improvisação, assim como a vida, e Time Out, de Dave Brubeck, com sua capacidade de integração rítmica, sempre terão um capítulo à parte na história do jazz, mas há algo que vai além. E é nesse “além” que We Insist!, de Max Roach, surge como um dos mais importantes discos de jazz da história.

Mas por qual motivo podemos crer nisso? Fácil, basta apertar o play e entender que ele não é só música, mas a essência de um gênero que é – por si só – político. Lançado há 53 anos, We Insist! ganhou destaque recentemente por ser o mais novo integrante permanente da Biblioteca do Congresso Americano, a instituição cultural mais antiga do país.

Gravado em 1959 e lançado em 1960, o disco tinha como pano de fundo o centenário da Proclamação de Emancipação, discurso de Abraham Lincoln que tornou a escravidão ilegal em 1963 no território americano. Esse fato, em meio às tensões da Guerra Civil após a eleição de 1860, jogou gasolina naquele que pode ser considerado um dos momentos mais explosivos da história americana. Resumindo, o Sul não aceitou o fim da mão de obra escrava e se revoltou contra o Norte em um conflito armado.

Passado um século do discurso, o que era para ser uma celebração logo se tornou um manifesto. A escravidão havia sido abolida oficialmente, mas o preconceito racial atingia novamente um nível tão absurdo que parecia ser necessário uma nova abolição para reafirmar os valores ressaltados um século antes.

Produzido pelo historiador e crítico musical do The Village Voice, Nat Hentoff, Max Roach contou com um seleto grupo de artistas para seu manifesto. A ativista – e vocalista – Abbey Lincoln e experiente saxofonista Coleman Hawkins eram as estrelas de um time que ainda tinha o trompetista Booker Little, o trombone de Julian Priester, o baixo de James Schenk, a percussão de Tomas du Vall e Raymond Mantilla e o saxofone tenor de Walter Benton. Gravado em tom de improvisação, o disco surge repleto de citações inspiradas no Movimento dos Direitos Civis e distúrbios ocorridos na Carolina do Norte no início dos anos 60.

Não se trata de uma audição fácil, We Insist!, lançado com o subtítulo Max Roach’s Freedom Now Suite, carrega uma carga dramática tão intensa que quase é possível sentir a agonia de seus músicos em cada faixa, em especial seu protagonista. Mestre na bateria, Roach faz uso de referências dos tempos em que a percussão fora proibida nos Estados Unidos como manifestação dos escravos, em Driva’ Man. Freedom Day, segunda faixa do disco, carrega uma marcha rítmica que remete ao anúncio de Lincoln um século antes.

Triptych: Prayer/Protest/Peace merece um parágrafo só para si. Faixa mais visual do disco, foi concebida inicialmente para uma peça de balé e, por isso, transpor para um estúdio de gravação tamanha dramaticidade não era um desafio fácil. Baseada em um duelo entre Abbey Lincoln e Max Roach, o miolo do disco vai além da escravidão americana e mergulha em um lamento inspirado pelos movimentos na África do Sul durante o Apertheid, iniciado 12 anos antes. Essa tônica se reflete nas duas faixas seguintes do disco, All Africa e Tears for Johannesburg, traçando essa conexão entre o regime sul-africano e a realidade americana, que naquele momento não sentia nenhuma vergonha em segregar o povo negro da convivência comum.

Em pouco mais de meia hora, We Insist! não deixa em seu ouvinte uma lembrança, mas uma cicatriz profunda que funde dor e música pelos meandros do jazz. Sem sucesso comercial naquele momento (algo até óbvio pelo tamanho da ferida que abria), o projeto passou a ser apreciado nas décadas seguintes, quando o tamanho da ficha parecia cair sobre críticos e uma sociedade que passou a ver o tamanho do buraco onde se enfiou na questão racial.

Relançado em 2007, ainda demorou 15 anos para que o disco ganhasse seu espaço na Biblioteca do Congresso Americano para finalmente ser eternizado em uma seleta galeria onde não poderá ser esquecido. O que é pouco, dado que os fios que unem os levantes por igualdade nos anos 60 e o movimento Black Lives Matter, mais de meio século depois, permanecem iguais. Ainda assim, ouvir We Insist! segue sendo uma experiência única para que não deixe ninguém esquecer o óbvio: de que o jazz é uma das mais poderosas manifestações políticas do mundo da música.

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Anderson Oliveira

Editor da Revista Som (www.revistasom.com.br) e do Passagem de Som, é formado em Publicidade e Propaganda com pós-graduação em Direção de Arte. Atualmente se aventura pela computação gráfica enquanto luta para completar sua coleção de Frank Zappa.